Quem assistiu Mandalorian, um dos carros-chefe da Disney+, testemunhou em duas temporadas fotografias incríveis e fotorrealistas, que não só remetem a produções mais recentes da franquia Star Wars, mas também estão — com o perdão do trocadilho — anos-luz à frente dos filmes. Sejam os efeitos práticos e inovações super criativas encaminhadas na trilogia clássica, ou na dependência quase patológica de chroma-key e tela verde na trilogia dos anos 2000 à trilogia mais recente capitaneada por J. J. Abrams.
Fato é que quem viu a perseguição das X-Wings no planeta gélido da segunda temporada ou os campos desérticos da primeira não estava testemunhando apenas uma cinematografia muito bem produzida, mas uma convergência entre dois universos do entretenimento e a evolução dos efeitos gráficos nessas produções. Isso por conta de um motor gráfico desenvolvido especificamente para fazer jogos. Mas...
O que é um motor gráfico?
Imagine que você queira criar um jogo do zero. Uma das formas de fazê-lo é pela programação de um ambiente para que o jogo possa existir, ou por meio de uma plataforma que já inclui partes desses códigos, o que pode agilizar a etapa do desenvolvimento, dependendo do game que você deseja fazer. Essa plataforma seria uma ‘game engine’, um motor gráfico (em tradução livre).
Em geral, essas engines permitem que os desenvolvedores criem o game sem precisar recriar toda a lógica por trás de um jogo. Se lembra de Cyberpunk 2077? Grande parte do fracasso no lançamento do jogo foi que a desenvolvedora CD Red Projekt ousou em criar o motor gráfico em paralelo à própria criação do jogo, algo como ir construindo os trilhos enquanto o trem irá percorrê-lo.
Alguns motores gráficos são pagos, outros gratuitos (como a Unreal e a Unity). Há também as usadas pelas principais empresas como EA, Ubisoft, Rockstar, etc. que são criadas para uso interno e podem servir até jogos de estilos diferentes. É o caso da engine Frostbite da EA, no qual Battlefield foi desenvolvido durante muito tempo e também foi usada para Dragon Age: Inquisition, e até mesmo para o FIFA. Mas o que isso tem a ver com Mandalorian?
Bem, tudo. Acontece que a mais popular das game engines é a Unreal, desenvolvida pela mesma empresa produtora de Fortnite, a Epic Games. Principalmente durante a transição da geração de consoles para o Xbox 360 e PlayStation 3, ela se tornou a ferramenta de preferência para o desenvolvimento dos principais jogos do mercado.
Segundo o fundador e CEO da Epic, a Unreal é “um motor de jogo com um sistema de ferramentas de alta produtividade, com uma linguagem de programação destinada a simplificar a lógica de jogabilidade”.
Para a produção de Mandalorian, a Disney aliou-se à Epic e à Industrial Light & Magic (ILM), companhia de efeitos visuais, e as empresas desenvolveram a tecnologia StageCraft, a carta na manga da série Mandalorian para cenários tão realistas.
A magia da produção
O StageCraft é uma espécie de estúdio semicircular de 22 metros de diâmetro, cercado de paredes compostas por telas de LED de altíssima definição de aproximadamente seis metros. Conectadas ao motor gráfico Unreal, a disposição dessas telas permite que os elementos gráficos usados como fundo nas gravações sejam renderizados em tempo real, o que permite além dos diretores mexerem elementos do cenário como bem entenderem, uma iluminação realista — um dos principais desafios para o fotorrealismo em filmagens de tela verde.
O avanço por conta do motor gráfico permite que a produção da série consiga usar planos de fundo com uma câmera em movimento, fazendo com que ele responda de acordo com o ângulo de ação em primeiro plano. Isso ocorre porque a câmera principal é rastreada em 3D com a Unreal, criando uma ‘câmera virtual’ no ambiente do motor gráfico. Assim, o cenário se move de acordo com o movimento do ponto de filmagem para equilibrar a perspectiva do fundo, um processo que na tela verde também seria muito mais trabalhoso.
O que difere Mandalorian de outras produções que usaram algo semelhante à StageCraft, como o filme Oblivion (2015), por exemplo, é especificamente a flexibilidade dessa câmera. Nas cenas do filme de 2015 essa câmera era estática.
Segundo John Favreau, o padrinho das mega-produções da Disney, a tecnologia permite uma fusão entre pré e pós-produção, criando um sistema único para a gravação do seriado. Isso explica por que mais de 50% da primeira temporada de Mandalorian foi filmada usando essa metodologia inovadora, eliminando por completo a necessidade de filmagens de localização e permitindo, por exemplo, em questão de minutos ou horas, a mudança completa de cenário, incluindo referência visual para os atores e de iluminação para os artistas gráficos. O que economiza tempo de locação e instalação de cenários que seriam filmados fora do estúdio.Durante a segunda temporada a ILM aprimorou a StageCraft para uma versão 2.0, que incluiu o primeiro motor de renderização de luz cinematográfica em tempo real, o Helios — algo que se assemelha ao ray tracing nos games. Além disso, foi inclusa na segunda temporada uma maior capacidade de resolução nas projeções de tela e um ‘palco’ de 180 graus, o que permite os atores a terem uma melhor ambientação das cenas, com visão periférica e tudo. Imagina que absurdo é estar no meio de um estúdio desses.
O futuro mandaloriano
A StageCraft é um dos principais avanços tecnológicos referente à produção no mundo do entretenimento. Além de, na prática, ser uma mão na roda para esse processo, para as grandes empresas é ainda mais chamativo. Isso porque também a utilização dessa tech quer dizer uma redução significativa nos custos de produção dessas obras. E quando a solução tá no bolso, qualquer empresa quer.Não é à toa que um amontoado de produções da já megabilionária Disney — além do próprio Mandalorian — estão utilizando a tecnologia da ILM para suas gravações. Obras como a série Obi-Wan Kenobi (2022), O Livro de Boba Fett (2021), ou filmes como o novo Batman (2022), o novo Thor: Love and Thunder (2022) e o Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania (2023), além do terceiro Guardiões da Galáxia (2023).
E o mais curioso é que isso seria impossível se os games não tivessem chegado nesse patamar tecnológico de hoje.
O mais curioso é que essa tecnologia continua evoluindo. Em maio de 2020 a Epic anunciou que já estava desenvolvendo a Unreal 5, que pretende ser o próximo marco no fotorrealismo dos games.
A nova versão permite novos elementos como o Nanite: um mecanismo que permite que elementos fotorrealísticos sejam importados diretamente para a plataforma do motor, sem a necessidade do artista ter muito trabalho ao fazê-lo. Ou a Lumen, uma evolução da engine anterior, que permite automaticamente o cálculo de como a luz age naquele ambiente, sem a necessidade que o artista mapeie as cenas, economizando tempo. Veja uma prévia da tecnologia em ação:
Depois de ter visto isso, imagine agora então onde nossas amadas produções poderão chegar.
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