Quando o cineasta William Friedkin lançou, em 2018, um documentário sobre um exorcista, levou a imprensa norte-americana em um passeio em Georgetown (Washington), locação do clássico O Exorcista (1973). E aos jornalistas resumiu o tema de sua mais célebre obra: “Blatty [William, autor do livro homônimo] e eu nunca falamos em fazer um filme de terror. É um filme sobre o mistério da fé”.
De fato, a fascinação pela fé permeia todo o filme, um dos únicos de horror a somar diversas indicações ao Oscar. Jason Miller (1939–2001), ator que interpreta o padre Karras, definiu Exorcista como algo além do gênero, uma peça de “terror filosófico”.
Baseado num caso supostamente real de exorcismo, o filme se concentra muito mais em construir uma atmosfera sinistra do que em impressionar a platéia com artifícios baratos (os célebres jumpscares) ou aparições demoníacas. Nada disso: para o bom terror, basta a sugestão. Melhor, no caso desta obra, a lembrança de que “há muito mais entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”.
A cena que mais demonstra esse teor filosófico acontece entre o padre Karras e Merrin (Max von Sydow, morto este ano) logo após a primeira sessão de exorcismo da jovem Regan (Linda Blair). Karras, em crise de fé, questiona a arbitrariedade da situação, que acomete uma menina indefesa. O padre mais experiente responde: “Acho que o propósito é nos fazer entrar em desespero. Para nos vermos como animais e feios. Rejeitar a possibilidade de que Deus nos ama”.
Friedkin, que dirigiu o filme logo após ganhar um Oscar por Operação França (1971), queria mesmo transformar a obra em uma metáfora sobre a condição humana, ao invés de recriar um ritual religioso dos tempos medievais. E é exatamente por isso que a película até hoje seja o clássico indiscutível do terror, com suas duas horas de agonia que assustam muito mais pelo que não está em tela.
A basilar obra do terror nos ensina que os bons filmes de gênero são os que se desprendem das convenções de nicho. O real medo vem daquilo que nos ameaça no âmago existencial, estendendo-se na maneira em como nos organizamos enquanto sociedade.
No caso do Exorcista, muito foi debatido desde que se tornou uma das grandes bilheterias da história. Psicólogos afirmaram ser uma analogia para o momento em que as mulheres entram na adolescência e jornalistas especializados atribuíram às mudanças de hábito nos anos 1970.
Mas, geralmente, a explicação mais simples é a mais eficaz. O filme é assustador porque ameaça a família como instituição. É um drama de um núcleo familiar invadido por um agente externo, sem ter como se proteger. De uma família que não entende a aleatoriedade da tragédia e o pior, e mais caro à norma: coisas ruins acontecem com pessoas boas.
O poder da sugestão
Podemos lembrar, ainda antes da obra de Friedkin, de Bebê de Rosemary (1968), dirigido por Roman Polanski. Filme que aborda temas como a pureza imposta pela Igreja Católica, a liberdade sexual da mulher, o prenúncio do fim da cultura hippie (a seita de Charles Manson aterrorizaria os Estados Unidos pouco tempo depois) e, de quebra, o nascimento do filho do capeta.
Polanski, que enfrenta diversas acusações de abuso sexual, propiciou a criação de um clima sufocante apenas com o poder da sugestão e com a utilização de climas soturnos. O designer de produção do filme, Richard Sylbert, resumiria depois como “o melhor filme de terror sem terror”.
Hoje, é possível encontrar fortes traços desses dois clássicos na bela safra de filmes de horror recente, chamados pela crítica de especializada de “pós-terror”. Na verdade, apenas um termo para designar filmes que se destacam do pastiche do gênero, ou que usam o horror como metáfora para abordar temas mais amplos. Algo que, como vimos acima, não é exatamente novidade.
Nessa toada, James Wan abandonou o gore de Jogos Mortais para reverenciar o passado com Invocação do Mal (desperdiçado em meio a uma sequência de filmes péssimos), Jordan Peele abordou questões sociais em Corra! (2017) e Robert Eggers critica o patriarcado cristão no tenebroso A Bruxa (2015).
Mas talvez o mais sinistro desses jovens cineastas seja Ari Aster. O jovem diretor fez de Hereditário (2018), seu longa de estreia, um terror antológico, em que vemos uma família em trauma desintegrar diante de nossos olhos. De novo, sem ter como se defender. É um filme que constrói sua ambientação com calma, conta com atuações soberbas e um nível purista de efeitos especiais.
Como viria a nos dizer Ludwig Wittgenstein, filósofo que estudou a lógica da linguagem, o mais importante é aquilo que não pode ser dito. Uma conclusão terrivelmente alinhada com o verdadeiro terror existencial.
É verdade que o gênero tenha seus vícios e paradigmas. E que também é injustamente subestimado pelas grandes premiações. Parece que a maior razão disso é fato de nos mostrarem em tela o que evitamos sentir por dentro. Ou pela sensação de que jamais a ficção será mais assustadora que a realidade.