O FIFA, que em breve não será mais FIFA, normalmente conta com vários modos de jogo. Entre esses o mais popular — e a principal fonte de renda (recorrente) — da empresa vem do FIFA Ultimate Team (FUT), uma espécie de minijogo de montagem “estratégica” de elencos, em que cada jogador é uma figurinha, e compram-se pacotes para a Electronics Arts manter números abismais ao longo da temporada, como a receita de U$ 1,623 bilhão no ano fiscal de 2021.
Continuando o contexto, que prometo por minha carta do Cristiano Ronaldo 97, será simples. Neste modo há uma espécie de mercado interno, uma mecânica do jogo para jogadores comercializarem suas cartas, em um sistema mais complexo do que eu acho necessário. Isso cria uma experiência curiosa, pois existem literalmente milhares de tutoriais, reportagem específica, e até mesmo canais no Youtube dedicados a dar conselhos de venda e compra dessas "cartas", algo que parece uma distopia de muito apelo na atualidade.
Assim, a experiência de se jogar o modo Ultimate do FIFA passa pelo que considero três modos distintos para montar seu elenco com os jogadores ideais. O primeiro é basicamente um jogo de simulação em que raramente o jogador aproveita seus jogadores, ou tira mais proveito em compras e vendas. Noutro, o jogador participa dos desafios de montagem de elenco (um quebra-cabeça onde usam-se, geralmente, peças repetidas para ganhar pacotes ou receber um jogador específico em troca). Por último, jogadores que gostam de disputar o torneio online do jogo para conquistar melhores recompensas — é aqui que estão os jogadores profissionais, que vão alguns níveis acima…
Tudo isso é o que, no mundo dos jogos, se chama de grind. Cuja tradução literal é moer. E é moendo horas a fio que o jogador *pode* conquistar o que ele quer. Não é uma certeza nunca. E essa escolha é claramente deliberada. A EA construiu o modo de FUT assim para ele ser uma réplica distópica do livre mercado onde os jogadores não tem a menor possibilidade de conseguirem as "cartas" que querem a não ser que gastem cada vez mais -- tempo e recurso. No Reino Unido, isso motivou inclusive ações coletivas que citavam este modelo como uma réplica de apostas para crianças. Te lembra um sistema em específico?
Quando tudo quebra
Mas tudo isso rui numa época como a que estamos. O lançamento de um novo FIFA se aproxima. Como geralmente é lançado na janela do fim de setembro e início de outubro, os meses que beiram esse período do ano costumam ser os mais divertidos dentro do modo mais popular. E há algo evidente, uma vez que os jogadores mais habilidosos — suas versões, algo que merece um texto para ser explicado — se tornam as coisas mais comuns.
O primeiro demonstra o quanto a EA limita uma parcela grande de Fifa com jogadores e versões fracas nos momentos iniciais da temporada do mais recente jogo da franquia. Quando tudo é colocado ao ponto zero, e os jogadores não podem levar nem sequer um jogador de sua equipe para a próxima versão do jogo. E o que é mais esquisito observando logicamente essa construção de mecânica: não faz sentido. É um limitador quase masoquista gastar dezenas de horas no momento inicial ao lançamento, sendo que naquela época são ainda poucas cartas que valem a pena. Pelo contrário, nenhuma dessas cartas pode ser comparada com as superiores, versões bem mais fortes do que antes — como meu Cristiano Ronaldo 97. E o ciclo continua.
E é aí que entra a minha experiência. Quase como um pombo que chegou atrasado no parque para comer as migalhas. Eu aproveito FIFA de uma forma diferente. Adaptada dos anos de Winning Eleven (ainda tinha esse nome na época, e não Pro Evolution Soccer antes deste ter sido desmontado pela Konami), FIFA 97 modo futsal, e coisa e tal, eu me acostumei a entrar nesses jogos de uma forma: tentar me divertir. E este objetivo é prolongado por dezenas de horas num modo de jogo que envolve futebol? Sim.
Mas todas essas dezenas de horas agora valem a pena. Porque, como eu disse, aproveito FIFA de uma forma diferente. Talvez como uma espécie distorcida e humanamente desprezível de um apostador em plena crise de 2008, que espera o colapso absoluto do mercado para ganhar dinheiro. Ou a família Bush no 11 de setembro. No meu caso, eu sou um acumulador de jogadores para resolver os malditos quebra-cabeças.
Isso é ainda melhor quando a recompensa dos quebra-cabeças não são dois jogadores da quinta divisão do sul da Inglaterra em pacotes aparentemente bons. Não, isso acontece no início do ano. Hoje é tempo de glória. E a igreja louva de pé conseguindo as melhores versões dos jogadores até agora, algo que se torna mil vezes mais fácil.
É nesta época que a EA pensa bondosamente “por que não recompensar meu filho por essas dezenas de horas”, e um Cristiano Ronaldo 97 chega ao seu clube. SIIIIIIIIIIIIHHHH (é assim?). Encerrada a idiotice, é basicamente isso mesmo que acontece. Os preços de jogadores que antes valiam F$ 1,6 milhão passa a ser de F$180 mil, e poir aí vai. Veja alguns exemplos da queda vertiginosa de preços nesta época do ano:
Na sequência de gráficos da flutuação do preço dos jogadores, é possível ter uma ideia de como o apocalipse mais divertido do ano ocorre antes do lançamento do próximo Fifa.
E, naturalmente, como mais e melhores jogadores chegam no seu elenco, mais fácil também será solucionar quebra-cabeças e ganhar mais pacotes, e abrir. E o ciclo continua. Mas agora é um ciclo divertido. Isso porque, para mim, retornando ao que havia comentado, o principal se torna muito mais acessível e menos estressante. A diversão com boas versões e bons jogadores acaba resultando em belas peças de chutegol. Golaços, petardos, folhas-secas, trivela, goleiro cobrando escanteio curto, malabarices. Tudo que faz FIFA ser divertido é possibilitado pois basicamente os jogadores mais quebrados do modo mais popular estão disponíveis.
E quando a diversão do seu jogo está justamente no momento em que o cataclisma acontece, isso significa alguma coisa? Eu não sei nem é minha responsabilidade responder. Até porque sabe o que acabou de acontecer enquanto eu digitava esse texto? Meu Cristiano Ronaldo 97 não é mais a carta mais forte do jogo, e sim a versão 99 dele. E o ciclo continua.