Além de sua premissa curiosa, me chamou ainda mais a atenção perceber que a jogabilidade de CotL quase traça uma linha histórica recente de mecânicas presentes em jogos independentes e me faz refletir se a sua existência — caso esses jogos predecessores não existissem — seria possível. Explico melhor.
Em Cult of the lamb a sua missão é encarnar, literalmente, um cordeiro quando é lhe dada a missão de reunir seguidores de um culto para libertar um deus aprisionado, Aquele Que Espera. A partir daí, o jogador é colocado em frente a dois tipos de mecânica do jogo.
A primeira, uma jornada através de masmorras aleatórias estabelecida no estilo roguelike (como Binding of Isaac) com mecânica de ação, melhorias também aleatórias, e dificuldade desafiadora. Nessas masmorras é possível libertar novos seguidores, juntar recursos e, principalmente, derrotar os chefes que acorrentam a deidade que concede ao cordeiro habilidades especiais.
Ao retornar à base-sede do seu culto, um outro jogo é desembrulhado. Cabe ao jogador gerenciar todos os aspectos do lugar: desde o que os seguidores farão (juntar recursos, rezar para juntar a unidade de Fé necessária para avançar o nível da base), as missões que eles lhe dão, gerir construções, administrar a higiene, fome e a Fé geral do culto e “corrigir” asseclas dissidentes. Tudo isso com uma estética fofinha.
A linha temporal
Quando digo que CotL quase traça uma linha histórica das mecânicas de jogos independentes, penso principalmente no que aparentam as principais referências usadas para o jogo. E que, se não propositais, são extremamente semelhantes. Binding of Isaac parece ser a principal motivação para as masmorras no estilo roguelike e Stardew Valley para a parte de administração da sua base.
O mais curioso é que, neste contexto, ambas as mecânicas são complementares e por mais que a parte de ação roguelike já me pareça um pouco saturada atualmente, funciona. O grande objetivo de sua base, sacrificando seguidores, reunindo recursos, cuidando para que os seguidores não morram de fome, cultuando testemunhos e rituais, é fortalecer o cordeiro a fim de libertar a deidade dos quatro bispos que a apriosionam.
A partir daí um ciclo de jogabilidade é criado e dá a ambas as mecânicas a mesma relevância. Ao se aventurar pelas masmorras, o jogador pode reunir elementos que lhe permitem fortalecer a sua base. Ao gerenciar a sua base, o jogador pode se fortalecer para jornadas futuras nas dungeons. E por aí vai.
Cult of the lamb, em sua liberdade criativa e em seu traço lindíssimo e original, é também um comentário sobre religião. Me sinto aliviado por não ter que fazer este exercício, mas imagino qual outra mecânica seria mais cabível para tratar um tema tabu como esse? E que mecânica seria mais válida do que administrar a vida de seus fiéis do que essa? Talvez um dating sim com crianças, caso fosse um jogo sobre o Vaticano. Desculpa.
Por isso que, cada vez que eu penso mais sobre esse joguinho de um cordeiro cultuando uma entidade “pagã” antiga, não consigo deixar de imaginar que, além de traçar uma certa evolução em termos de mecânica, Cult of the Lamb é também uma evolução sobre como temas tabus passam a ser tratados de forma absolutamente criativa e engajante sem precisar necessariamente ser explícito.