Vencedor de uma Palma de Ouro por melhor direção e selecionado pela França para concorrer ao Oscar, Titane (2021) foi tido como um filme desconfortável. Chocante. Transfóbico até.
Pode ser culpa das campanhas de marketing, que não ficaram alheias ao “body shock” da diretora Julia Ducournau (‘Raw’) e impulsionaram essa narrativa; ou dos tempos modernos que rejeitam tudo aquilo que não se encaixe em convicções pessoais - ou é saturada o bastante para definir como revolucionário tudo aquilo que foge um pouco de algum multiverso fantástico.
Trocando em miúdos, vivemos tempos em que tudo é muito complexo, até mesmo o simples exercício de assistir a um filme.
Por todas essas razões é que Titane, disponível na Mubi, não me causou qualquer outra reação a não ser fascínio em função da forma com que trata pessoas comuns além do limite do colapso, num estado emocional tão primitivo que até as mais chocantes cenas não chegam perto da sensibilidade humana exposta ao longo de suas quase 2 horas de tela.
E é também por isso que o novo longa de Ducournau é uma obra que, por mais que aborda diversos temas complexos em sua trama, consegue reduzir sua variedade de gêneros em um só tema principal: aceitação.
Desejo, trauma e choque
Ainda criança, Alexia (Agathe Rousselle, perfeita) enche a paciência do pai (Bertrand Bonello) enquanto ele dirige, levando a um grave acidente. Para sobreviver, os médicos implantam uma placa de titânio em seu crânio.
Em seguida, Ducournau inicia com maestria um diálogo visual que serve quase como um estudo sobre os impulsos sexuais gerados a partir de um trauma, e a relação de desejo e repulsa que essa condição vai gerar em Alexia.
Não é um assunto novo. Aliás, este tema data de 1895, quando Sigmund Freud criou a psicanálise.
No entanto, ao usar o choque e o corpo para lidar com uma personagem traumatizada, a cineasta nos brinda com cenas impressionantes que vão de uma sequência de assassinatos à busca do autoconhecimento.
Masculinidade
Considero que o filme possa ser dividido em quatro partes. A primeira, o trauma acontece. Na segunda, temos um ponto de ruptura da personagem. Na terceira, e melhor, o longa disseca os conflitos internos da sexualidade e, no quarto, a catarse.
Essa terceira parte tem início quando Alexia, ao fugir das autoridades, se disfarça como um homem e se apresenta como o filho de Vincent (Vincent Lindon, numa atuação impecável), um bombeiro que busca seu filho desaparecido há 18 anos.
E é nesta etapa do longa que Ducournau mostra todo seu talento: a relação entre Alexia e Vincent é uma das coisas mais bonitas, agonizantes e sensíveis que já presenciei nos últimos anos. A tensão que é exposta em tela é muito mais chocante que as célebres cenas em que Alexia transa - literalmente - com um carro (e fica grávida), por exemplo.
Mas é justamente com a sensibilidade desta relação, em que Ducournau injustamente foi acusada de transfobia por alguns críticos, que o filme entra em seu melhor.
Vincent sabe que não se trata de seu filho. Alexia sabe que uma hora será desmascarada. A tensão é enlouquecedora, mas é contraposta com momentos singelos e delicados de empatia, numa construção tão poética que rompe as barreiras do gênero Body Horror.
Não precisa de muito
Titane é uma obra tão complexa por simplesmente abordar emoções humanas distintas - e por vezes antagônicas - que é possível que a cada sessão tenhamos uma leitura diferente sobre o filme.
Além de tudo, é cinema na veia. É a prova de que não precisamos de tramas mirabolantes ou efeitos hiper elaborados para contar uma história. É uma obra que não pretende dar respostas às complexidades humanas, e limita a narrativa ao que é mais importante e básico nas relações interpessoais.
Sinal disso é que até hoje esse filme não saiu da minha cabeça.