Não que isso signifique ser um filme custoso de ser visto; na minha experiência tornou-se difícil de digerir por como a história sendo contada é tecida ao espectador de maneira específica, quase como que em acenos visíveis e deliberados sobre o existencialismo, só que de uma forma íntima e instigadora.
É por isso que escolhas técnicas como a presença de um ruído alto e incômodo durante e depois do protagonista Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) ter vivenciado um evento traumático, ou do espelho na composição das cenas evidenciar uma vida quase ‘secundária’ dos personagens, acabam intensificando a máxima de Drive my car: “viver é isso aí, irmão”. Só que de uma forma menos tosca do que a que eu escrevi agora.
Linha de ouro
Aqui as escolhas técnicas estéticas não são, de longe, o foco do diretor Ryusuke Hamaguchi, porque apesar de intensificar e ilustrar passagens com uma precisão louvável, também permite espaço para que as sutilezas do roteiro sejam o principal chamativo do filme.
Essa elegância do texto se dá de forma variada e belíssima. A primeira, em como usa símbolos e pequenas joias — visuais ou não — para o espectador atento, como a presença do tocador de discos, a implicância do marido com a mudança de faixa da esposa, e até num contexto geral do que o carro representa para o protagonista.
Por outro lado a utilização do texto da peça Tio Vânia, de Anton Chekhov, acaba tecendo toda a linha narrativa do filme. É essa característica crua, uma visão quase cínica sobre a realidade, que acaba transmitindo a essência narrativa da metragem. É isso que eu quero dizer quando menciono o “existencialismo” na obra. Uma inspiração direta da literatura russa e que cai como uma luva para esta história.
Ainda no texto, a presença de personagens que expõem características muitas vezes implícitas do protagonista, o que enriquece ainda mais a experiência. Pontos como o próprio Takatsuki e o reflexo de um jovem ator, iniciado na TV e em séries, e a inevitável comparação que Yusuke faz sobre si, sua relação, e o jovem num contexto muito específico elaborado pela história.
Ou como Oto é um reflexo de um processo de cura interdependente para o protagonista, e, indo longe, até mesmo como um casal de amigos, em que o esposo aprendeu linguagem de sinais em coreano para entender sua cônjuge, deixa escancarado um arrependimento quase físico no rosto de Yusuke sobre sua própria capacidade de comunicação.
Essa constância na demonstração de sentimentos de Yusuke, a quem é impossível não se identificar em algum momento da rodagem, é que, para mim, soa quase como uma forma de voyeurismo sentimental àquele personagem. A todo momento, não importa qual, há sempre um fragmento daquela experiência sendo passado ao espectador. O que, em quase 3 horas de rodagem, é um feito absoluto.
Eu poderia escrever mais trinta páginas (mentira, não poderia não) do que eu acho sobre como, por exemplo, a maneira como a maior parte das relações do protagonista com as personagens são construídas ou fortalecidas dentro do carro. Ali, naquele Saab 900 Turbo, há o que para mim é o maior diálogo que vi este ano, uma cena de uma conversa que é arrebatadora da forma mais honesta possível.
É sutil, mas não por isso menos complexo ou rico. É uma abordagem densa, e não por isso menos atrativa ou instigante. É indiscutivelmente um dos roteiros mais geniais que vi em um filme pela forma como respeita tanto a obra original (Haruki Murakami) como usa a obra referenciada (Chekhov) para tocar aquela camada da realidade intangível, que poucas obras conseguem mostrar, e aqui parece ser tecida em um ouro que por vezes brilha e por outras nem tanto assim. Assim como a vida.