Em meados de 2017, o movimento “me too” (‘eu também’, em tradução livre), incentivou o compartilhamento de relatos de assédio, abuso, estupro e outros tipos de violência, sofridos especialmente por mulheres. O movimento, que lançou a hashtag #metoo nas redes sociais, ganhou forte visibilidade, potencializou as vozes de vítimas e teve grande impacto no setor do entretenimento ao expor ainda mais atrocidades dentro do bilionário setor cinematográfico estadunidense.
As duas palavras ganharam maior vigor ao serem abraçadas por atrizes e outras profissionais da área. E quando, como avalanche, chegou à indústria de música e de games, suscitou a reflexão de que talvez boa parte do que consumimos como entretenimento seja fruto podre banhado em ouro, fabricado neste tipo de ambiente.
Nos games, essa questão é reincidente. Em 2014, o chamado Gamergate foi um movimento misógino — encabeçado principalmente por incels em seus covis de fóruns anônimos — que gerou a contrapartida da discussão sobre como as mulheres eram tratadas na indústria, tanto dentro quanto fora das telas.
Os resultados dessa discussão podem ser vistos em títulos após a E3 de 2015, que passaram a pensar a representatividade de personagens, mas a mudança ainda foi tímida. Já em 2019, o maior ‘ganho’ foi o aumento de títulos que te permitem escolher o gênero de seu personagem e não necessariamente uma história focada no papel feminino.
Esse hábito é parte estrutural da ascensão do meio ‘gamer’ para a mídia e para o público convencional (mainstream), calcado no apelo à figura feminina hipersexualizada e estereotipada, imagem cravada principalmente nas campanhas de marketing e personagens das décadas de 1980 e 1990 que apelavam ao público jovem, masculino e hétero.
A chegada do #metoo reacendeu a discussão, mais focada em um assunto que já rondava os estúdios e independe de gênero: a necessidade da mudança no processo de produção em ambientes absolutamente draconianos.
A partir de 2019 os casos de violência contra os trabalhadores em estúdios de games passaram a ser conhecidos pelo público. Em 2020, as entranhas de uma das maiores empresas de games da atualidade, responsável pelos títulos Far Cry e Assassin’s Creed, a francesa Ubisoft, foram expostas. E não cheiravam nada bem.
Várias pessoas que trabalhavam na empresa fizeram acusações públicas sobre a cultura de abuso moral e assédio sexual enraizada nas diretrizes do processo produtivo dos games da Ubisoft. A empresa sabia desses relatos e era ativa em tentar varrer os casos para debaixo do tapete. Em rédea curta e mordaça, os funcionários eram obrigados a se silenciar sob a pena de serem demitidos caso expusessem algo. Na época, o CEO Yves Guillemot, soltou palavras ao vento de que aquilo mudaria, e os relatos até hoje são de que a empresa continua cultivando sua cultura abusiva muito bem.
Em 21 de julho deste ano, no entanto, a história ganhou um fato novo sem precedentes. Os relatos fugiram à alçada da mídia ou de ex-funcionários. Nessa data o departamento de Emprego e Moradia Justa da Califórnia denunciou a Activision Blizzard, publicadora de Diablo e Call of Duty. Segundo a peça, a companhia nutre uma cultura de “frat boy” (moleque de fraternidade, se você viu algum American Pie, deve ter uma ideia) no QG da companhia, em Santa Mônica.
Lá, detalha a ação movida contra a empresa, as funcionárias são sujeitas a assédio sexual constante, remuneração desigual e retaliação. A denúncia alega ainda que o ambiente permite brincadeiras sexuais e brincadeiras sobre estupro no horário comercial, além dos frat boys jogarem videogame enquanto delegam responsabilidades às funcionárias.
Após a denúncia, no dia 23 de julho, o funcionário que abrisse seu e-mail corporativo na Activision Blizzard veria duas mensagens em sua caixa de entrada. Uma do presidente J. Allen Brack e outra do executivo da companhia e ex-conselheiro de Segurança do governo George W. Bush, Fran Townsend.
Brack disse ter sempre lutado contra a cultura “bro” e disse que as lideranças “e eu vamos encontrar com vários de vocês para perguntar e discutir sobre como poderemos seguir em frente”. Townsend, por sua vez, disse que a denúncia era distorcida e mostrava uma imagem falsa da empresa. Nesse meio tempo, outras alegações contra a Ubisoft começaram a eclodir novamente, demonstrando que as palavras de Guillemot ficaram no mesmo estúdio em que havia dado sua coletiva em 2019.
Mais de 500 funcionários da Ubi assinaram uma carta aberta em apoio a funcionários da A/Blizzard e, novamente, evidenciaram a postura comum de acobertar casos de má conduta sexual por parte da empresa francesa.
Em 3 de agosto, após funcionários da Blizzard protestarem fora da sede da empresa, em favor de um melhor ambiente de trabalho, Allen Brack pediu demissão da presidência. Após a tormenta, outros casos de abuso moral ganharam foco, como o do cofundador da Fulbright, Steve Gaynor, que aparentemente também nutria um certo prazer em destratar mulheres no ambiente de trabalho.
O movimento de 2021 ganhou expressão, mas é difícil imaginar uma mudança relevante na atualidade. E quanto à Ubisoft? manteve executivos de alto cargo nos projetos do futuro Assassin’s Creed Infinity. É como diria Kurt Vonnegut sobre os períodos de terror, na ironia mais acurada, “é assim mesmo” que se fazem muitos jogos.
Por Álvaro Viana