De alguns anos para cá tornou-se corriqueiro encontrar jogos de acesso antecipado (early access) em inúmeras plataformas de vendas dessas obras. O que iniciou como a ‘evolução’ do modelo de testes fechados por tempo determinado para captar testadores voluntários de seus produtos acabou transformando-se em uma desculpa para alguns desenvolvedores lançarem um jogo eternamente incompleto, ou um projeto tão atrasado que logo tornava-se uma caricatura própria de si mesmo.
Lançamentos como os mais recentes Hades e Risk of Rain 2, por exemplo, que já haviam sido lançados em 2018 e 2019 em acesso antecipado foram “oficialmente” lançados este ano e sempre colocaram uma pulga atrás da minha orelha justamente pelas questões citadas acima. Acontece que a maior parte desses títulos são desenvolvidos por uma equipe muitas vezes reduzidíssima e na também em grande parte dos casos a saída do early access pode surgir como uma estratégia importante entre a vida ou morte dessas empresas. Em outros casos não.
E em casos mais bizarros ainda, companhias acabam por lançar exemplos dessa nova moda em jogos de grande proporção. Em 2016, quando Street Fighter V saiu pela Capcom, vimos a nipônica apresentar um jogo claramente incompleto, faltando desde personagens a um modo história, e foi recebida com vultuosas críticas dos fãs. Elementos que foram corrigidos com o tempo e, com esse mesmo tempo, provam a tese de que era um jogo em early acces, apenas com o detalhe de que uma megacorporação nunca assumiria essa pecha. Bom, até esse ponto você deve imaginar que foi exatamente isso o que aconteceu com a CD Projekt Red e o lançamento do jogo mais esperado do ano, Cyberpunk 2077…
O jogo foi recebido na última quarta-feira com certa surpresa, principalmente daqueles que não leram as análises prévias — ou as leram e optaram por não acreditar -, quando a extensa base de jogadores teve o primeiro contato com a obra. Neste ponto, vale um retrospecto. Nunca um jogo abraçou a responsabilidade de concentrar em si a ambientação de um subgênero tão inexplorado — nos games, ao menos. Então quando após o sucesso em Witcher 3 a CD Red anunciou seu próximo projeto, a mescla entre a admiração pela “simpatia” da empresa polonesa, conquistada com méritos no último jogo, e a capacidade de executar um excelente game tornaram imediatamente o tempo restante até o lançamento do jogo em uma contagem regressiva.
Contagem essa que, cinco minutos depois de ter sido acabada, catalisou ainda mais a frustração de boa parte dos jogadores. Foi o tempo necessário para esses encontrarem diversos bugs como personagens fazendo a famosa posinha de Cristo em modo debug, itens flutuantes, renderização falha de texturas e elementos na tela, inclusive na versão onde hoje o jogo roda melhor, no PC. Para quem comprou o jogo no PS4 e Xbox One a experiência também pode ter tornado-se amarga. Foram diversos bugs e um desempenho pífeo nos consoles da geração passada que renderam ao jogo a alcunha de #Cyberbug2077, segundo a hashtag no Twitter.
Acontece que mesmo com isso tudo, Cyberpunk 2077 é um bom... jogo.
O melhor lançamento
No que diz respeito ao que está no jogo em si, excluindo deliberadamente os tantos entraves técnicos, Cyberpunk traz a ambientação mais atraente já criada em um jogo de mundo aberto, misturando a estética cyberpunk com a cidade degenerada e distópica, ainda que cruamente real, criada por Mike Pondsmith, o criador do RPG de mesa de Cyberpunk do qual o jogo foi adaptado.
A presença de Pondsmith em toda a fase de desenvolvimento do jogo, avaliando se o que era transcrito em código fazia sentido no universo criado por sua genial mente faria sentido, foi o que propiciou o rico ecossistema encontrado no jogo, onde o jogador sente-se parte de Night City e desde o primeiro minuto apaixona-se por aquele universo, da forma mais distorcida e divertida possível.
E aqui, ecossistema torna-se descrição precisa, pois aliada a uma riquíssima fonte, a CD Projekt Red conseguiu estender a liga e usar da variedade de elementos do universo de Pondsmith para criar uma história instigante e que tenta mais sair do mesmo do que prosseguir com clichês taxados no estilo.
Exemplos claros disso são missões secundárias como a que você dá carona para um cara que tem um bizil em sua prótese cibernética peniana, episódio sucedido por um hilário diálogo no caminho, entre V, o personagem principal, e o homem.
A missão no hotel Konpeki Plaza, ao fim do primeiro ato, e os episódios que a sucedem concentram uma daquelas peças dignas do Barão Vermelho em Witcher 3. O jogo também apresenta um sistema de RPG sólido, que mesmo sofrendo com partes formulaicas de mundo aberto como a falta de variedade nas armas derrubadas pelos personagens (a ponto de tornar-se meio ‘drop de marmota’) consegue ser divertido.
Outros elementos importantes para a ambientação impecável no novo título da CDR são os “cacos”, mini dispositivos de dados que oferecem explicações adicionais daquele mundo. Mesmo sendo um elemento deveras limitado de narrativa, acredito ser indispensável ler esses fragmentos espalhados por toda Night City para tirar mais proveito da obra.
É com base nesses satélites que o “planeta Cyberpunk” vai tornando-se um astro cada vez maior como uma experiência instigante e viciante de ser prolongada. Nesse sentido todos os elementos incluídos aqui fazem sentido e acrescentam para a construção de o cosmos próprio, onde o jogador, mesmo limitado pela história, sente-se embuído para passar horas a fio na explroação daquele universo vil e degenerado.
Infelizmente o jogo em em seu estado atual torna-se um caso de ‘saco azul’ absurdo. Principalmente por conta dos inúmeros crashs na versão de PlayStation 4 — testada no PlayStation 5. No patch lançado pela desenvolvedora dois dias após o lançamento isso ainda não havia sido corrigido, ainda que problemas com iluminação e renderização de objetos e texturas no PS5 tenham melhorado.
É por construir um jogo extremamente interessante que, quando somos tirados dele obrigatoriamente por uma falha dos próprios desenvolvedores, há uma frustração absurda que faz com que pensemos duas vezes antes de reiniciar o jogo pensando se evitaremos nova frustração ou não. No meu caso, por vezes fiz isso. Ao tempo em que a gravidade de Cyberpunk te puxa para dentro daquele mundo, os “teóricos conspiracionistas” dos crashes no jogo te fazem querer cometer um seppuku.
Outro aspecto que não consigo entender é a ausência do lançamento de uma versão para a próxima geração, visto que a versão lançada para PS4 não explica o tempo jogado fora da equipe polonesa e nem as alegações de crunch.
Vale destacar ainda outro aspecto hilário e menos desinteressante que o jogo per se. Essa disparidade no lançamento de versões diferentes, em Pcs e consoles novamente fez transbordar aquela parcela do chorume recorrente e personificada em alguns fãs cancerígenos na indústria.
Independente de suas plataformas de escolha, esses pequenos serem parecem ter a necessidade de suprir uma ausência que parece profunda na presença de um sentido em suas vidas na ubíqua defesa de escolhas mercadológicas, abreviando a discussão de uma bandeira à ridícula falsa dicotomia para uma autoafirmação que logo se deteriorará passado o hype consolístico. E na mesma medida ajudará às empresas que amam esse tipo de discussão absurda.
Por essas que creio Cyberpunk 2077 ser o early access mais bem feito da história. É absolutamente impossível determinar os motivos de tantos problemas em consoles caseiros, mas na mesma medida um óbvio exemplo de quando uma empresa quer morder mais do que consegue mastigar. Mas o que se está mastigando infelizmente é bem gostoso.