Imagine se você tivesse a oportunidade de se encontrar ou quiçá trocar figurinhas com um gênio da sua área, seja ela qual for. A primeira vez que ouvi a menção a Struggle: The Life and Lost Art of Szukalski, foi difícil conter a curiosidade. É complicado sintetizar o documentário, que consegue passar ao espectador não só a linha temporal de uma vida e suas controvérsias mas também atiçar uma reflexão que deve existir no interior de qualquer ser humano: o legado além da vida.
Dirigido por Irek Dobrowolski, o doc traça um breve histórico em torno da vida de Stanislaw Szukalski, genial escultor e artista polonês, figura que por si só parece sempre esboçar uma sátira de si mesmo em suas afirmações sempre presunçosas — ainda que sejam no mesmo nível sempre apoiadas por trabalhos incríveis.
O documentário usa como apoio filmagens feitas com o artista após alguns quadrinistas independentes da década de 70 de Los Angeles, especialmente Glenn Bray, descobrirem que o escultor estivera refugiado em na cidade californiana após a invasão da Polônia que marcou o início da fulminante blitzcranke do exército alemão na Segunda Guerra. Cenário que permite a abordagem das passagens da vida de Szukalski a partir de suas obras, com o apoio da análise de críticos e artistas, que dão ao espectador a explicação daquela peça artística, por vezes mostrada nos mínimos detalhes por animações 3D ao espectador.
Essa construção torna indispensável o paralelo com reflexões sobre vida e obra durante nossa existência durante os minutos do documentário, principalmente quando nos deparamos com breves demonstrações da lente pela qual Szukalski via a vida — peculiaridades que vão desde a criação de um alfabeto próprio em sua infância motivado pelo apoio incondicional dos pais às suas percepções enquanto criança até sua aprovação na Academia de Artes polonesa por uma simples escultura do joelho de um modelo nu.
Esse paralelo é ainda mais evidente ao vermos algumas reflexões do artista sobre a existencialidade. É aí que novamente passam das concepções peculiares sobre como a escola nos tolhe durante a infância a como a Ilha de Páscoa é a locação da origem de todas as civilizações antigas — esse último resultado de uma série de estudos do artista sobre esculturas desses períodos, que jura de pé junto ter desvendado o segredo dessas civilizações anciãs.
Ao nos deparar com a definição cristalina sobre a arte e seu próprio “self”, sua própria lente da vida, é palpável a instigante reflexão sobre “o que” e “por que” fazemos o que fazemos em nossos ofícios, novamente sejam eles quais forem. Essa noção torna-se perene durante o documentário, emanada sempre por Szukalski e que ao fim da metragem é quase inevitável não considerar como o principal aspecto da excelência em suas obras.
Controvérsia
Aquestão mais controversa da vida do outrora escultor, quando retornou à Polônia, reside na passagem que mostra a série de panfletos com conteúdo antissemita publicados em meados de 1930, momento em que a própria noção de nacionalismo exacerbada estava em ponto de ebulição no país. À época, Szukalski, que se via como um próprio heroi nacional do povo polonês, foi convidado pelo governo a fazer esculturas que reforçassem o espírito nacionalista do período, artifício à época planejado como claro alinhamento do governo à população.
O documentário consegue contextualizar a passagem equilibrando suas demonstrações para não resvalar em qualquer juízo de valor. Aspecto que deixa isso claro é o segmento onde os documentaristas fazem o paralelo com movimentos de extrema direita na Polônia dos dias de hoje, muitos dos quais usam-se das obras de Szukalski como estandarte.
É evidente que após ter seu estúdio e todas as obras de sua vida até então destruídas por um ataque aéreo alemão, a noção do artista mudou. A influência desse episódio na vida de Szukalski ramifica-se não só em um toque artístico mais melancólico evidente nas obras do polonês, como também em sua percepção acerca da vida.
É após esse episódio que ele muda-se para Los Angeles e passa a trabalhar discretamente, e somente 30 anos após, é descoberto por um grupo de quadrinistas independentes da cidade.
É construindo esse ciclo e fechando a narrativa da vida do artista, um dos poucos casos de gênios esquecidos da arte plástica — e ainda assim comuns ao longo da história da humanidade — que o documentário define em sua narrativa uma atemporalidade que mostra um inédito e curioso caso de amizade entre artistas de culturas e gerações diferentes e coloca uma pulga atrás da orelha do espectador. Essa constantemente instiga a noção do quão raro deverá ter sido testemunhar esse raro momento.
Às vezes que me vi questionando se eu assistia o surgimento de um desses gênios que passam a ser eternizados na história ecoou com esse raciocínio que nos dias de hoje parece mais comum do que qualquer outra coisa. Isso é replicado inclusive na política ou a própria pandemia em qual estamos presos. Fato é que descobriram um gênio que chama Picasso de Picasshole, o que por si só já deveria mantê-lo eternizado para a história da humanidade.
Brincadeiras à parte, o documentário faz um trabalho magistral em resgatar a vida de um personagem tão híbrido e controverso. Torna-se ainda atemporal ao nos colocar em frente a trabalhos magníficos que inspiram a reflexão sobre o legado da vida e a sensibilidade acerca de tal e também qual a natureza da genialidade na balança entre o reconhecimento e a própria genialidade.
Se algum dia você já se viu nesse lugar, assistir essa metragem é tarefa quase obrigatória.
Por Álvaro Viana