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Duas formas, uma crise: como Round 6 e Parasita retratam uma Coreia do Sul


O ano de 2020 foi um marco para o cenário audiovisual sul-coreano após Parasita ganhar a categoria de melhor filme no Oscar, feito nunca antes atingido por um filme de língua não inglesa na premiação. A obra foi aclamada por uma infinidade de escolhas acertadas, do peculiar roteiro, ótimas atuações, à precisa direção de fotografia, e por aí vai, mas o que mais tornou-se marcante nas discussões sobre o filme foi como ele mostrou à precisão, em forma de sátira — até determinado ponto — , o momento socioeconômico da Coreia do Sul.

Seja pelas vicissitudes que alguns economistas empregam à ascendência econômica meteórica, seja pela miríade de índices que reforçam a ideia de desigualdade social, não há amostragem mais humana, subjetiva e significativa do que a arte. E se em 2020 Parasita conseguiu esse feito sem deixar de ser uma obra impecável, em 2021 a medíocre série Round 6 tomou esse papel para criticar não só o sistema capitalista, no geral, mas como a sociedade sul-coreana vê uma ascensão da alta pobreza e da cratera da desigualdade social. De uma forma ou de outra, o mundo pode perceber pela íris desses produtores duas maneiras de retratar uma mesma crise.

Round 6

A série que se tornou a mais popular da Netflix de todos os tempos é proposital e constantemente apelativa em reforçar o ideal do absurdo do modelo econômico vigente no mundo. Por um lado, a inerente escolha da história, em que os jogadores são desafiados a escolher entre continuarem endividados amarrados a uma vida infernal — segundo a premissa do capitalismo e da série — ou entrarem em um jogo criado para divertir bilionários doentios onde esse inferno pode ser breve e o paraíso alcançável. Da mesma forma tudo pode acabar em literalmente um passo.

Ou, mais absurdo ainda, a série opta que os momentos em que a morte e a violência gutural sejam, na grande maioria, orbitados pela temática e estética infantil, seja na própria ideia dos jogos, seja em alguns dos cenários ou na escolha e combinação de cores. O contraste mais palpável do ‘absurdo’ entre a ingenuidade da infância e a questão existencial mais incompreensível para a mente humana: o inerente fim.

A série tem algumas — raras — construções visualmente marcantes, como a primeira vez em que a premiação é mostrada e a votação para interromper o jogo (em que o “porquinho” está sempre acima da cabeça dos participantes, em tom dourado e opulento), ou o icônico labirinto de escadas. Todavia, o aspecto visual mais marcante e que contribui para a crítica social intencionada pela obra, está em seu uso de cores.

Ainda que simples, o uso de três cores temáticas que permeiam todos os momentos da primeira temporada é um dos poucos méritos consistentes de Round 6. Aqui, o uso de cores denota as temáticas intencionadas pelos criadores. Por exemplo, o verde é claramente a subserviência dos pobres jogadores, que são colocados em um uniforme no tom esverdeado doentio, mas também são enclausurados em um galpão ‘decorado’ em um tom mais sóbrio do mesmo tom.

Além disso, a cor ao longo da série também denota o tom de constante ameaça e, por fim, a corrupção dos próprios jogadores ou até mesmo de seu criador — como é evidente na passagem final do seriado.

Enquanto isso, o vermelho é naturalmente o perigo constante e a concretização do absurdo. Nos uniformes dos guardas ou no próprio sangue, a cor denota o domínio dos poderosos, do sistema e, principalmente, é uma tonalidade mais viva, diametralmente oposta ao tom esverdeado e dessaturado dos participantes e do ambiente o qual estão presos.

O terceiro elemento desse “tripé cromático” em Round 6 está no uso do amarelo, presente essencialmente na maior parte das brincadeiras, um prenúncio mórbido daquele contexto, mas também da ganância traduzida na simples tarefa de tentar manter-se vivo, assim como a própria existência daqueles jogadores na vida fora do jogo. Além disso, é também a escolha da equipe da série para retratar os VIPs em máscaras extremamente ornamentadas em um tom dourado.

Infelizmente não há mais elementos que reforcem essa noção na série. Isso porque Round 6 se perde no decorrer de seus episódios principalmente quando precisa dar o tom do custo ‘humano’ àquele absurdo que está acontecendo. Para isso se apoia em personagens desinteressantes, com atuações medianas e por vezes histéricas que beiram o amadorismo e que reforça ainda mais o quanto a obra se perde ao mirar mais no elemento do choque do que a sutileza em fixar sua mensagem.

Parasita

Sutileza é exatamente o que ocorre aqui… Até certo ponto. Parasita também se apoia em um absurdo. É uma sátira, ou seja: tem um alvo e usa do exagero para passar a sua mensagem. E o roteiro, coescrito por Han Jin Won e o diretor Bong Joon Ho, tem a noção exata disso. É o que faz com que o “plot twist” de Parasita seja digno das metragens sul-coreanas, de fato. Se lembra de Oldboy? É algo quase assim.

O roteiro de Parasita é impecável, sim. Mas a produção visual do filme também ajuda aumentar a magnitude da crítica a qual o filme se propõe. Desde os primeiros momentos, além do ângulo antinatural da janela da casa da família Kim em relação à rua, também vemos como as composições claustrofóbicas, em uma casa bagunçada e cheia de elementos, são contrastadas com a casa da família mais rica. Além disso algumas passagens de ângulo alto funcionam ainda melhor para pintar aquele núcleo familiar não só como pobre e quase impotente, mas absurdamente apinhado de preocupações.

O contraste aqui se dá em como a casa dos patrões Park é mais ‘limpa’, os enquadramentos têm mais espaço e menos elementos. Tudo muda quando há o plot twist. Nessa cena inclusive, acompanhamos a descoberta da matriarca Kim dentro da casa e depois disso, no evento mais marcante do filme — bem, é melhor você assistir — como essas escolhas tomam a direção de dar mais intensidade e desespero para as passagens.

Essas são algumas demonstrações de como as escolhas mais técnicas em Parasita contribuem para um já excelente roteiro, dando ainda mais camadas de significado e fazendo com que, em vez de um apelo histérico apelativo, haja espaço e tempo para reflexão.

Álvaro Viana

Jornalista político, tem 30 anos, apaixonado pelo mundo dos games, cinema, e o ofício de analisar esses temas de forma criativa. Trabalhou com análise de jogos para o jornal Correio Braziliense e outras publicações e edita tudo que você lê neste site. Quando sobra tempo cura memes, reclama no tuiter, e testa novos templates pra loady!

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