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O que eu, você, Nick Cave e João Gordo temos em comum?

Caiu como uma bomba na imprensa paulistana o possível fechamento do cinquentenário Bar Mercearia, na Vila Mariana. Há pelo menos um mês, jornalistas da cidade — certamente fregueses — não falam em outra coisa.

Segundo contam, o Mercearia é há anos reduto intelectual no badalado bairro de São Paulo, atraindo todo tipo de gente: de hippies a jornalistas, passando por artistas e até mesmo patricinhas e mauricinhos.

Talvez a emoção tenha cegado os repórteres, mas ainda não entendi ao certo a razão do fechamento. Sei que passa por uma briga entre irmãos, que são sócios, e a compra dos imóveis por uma construtora enquanto São Paulo — afirmam os jornalistas de lá — passa por um grande momento de gentrificação.

Ou talvez seja sinal dos tempos: hoje em dia, as mortes, reais ou simbólicas, são tantas que fica difícil mesmo olhar tudo objetivamente — afinal, motivos para ficar em luto não faltam.

Recentemente, li a biografia do João Gordo, que até virou dica de nossa mais recente newsletter. Por histórias hilariantes e outras terrivelmente tristes, não deixei de ficar comovido também em notar como nossa estória é conectada ao meio em que vivemos.

Gosto particularmente desse trecho, quando Gordo fala sobre quando teve um insight sobre a relação entre patrão e trabalhador que deixaria Marx com inveja:

“Foi na fábrica que aprendi tudo sobre o relacionamento entre patrão e empregado. No Brasil, qual o maior sonho do empregado? É foder o patrão, claro. Trabalhar menos e ganhar mais. E eu virei especialista nisso. No almoço, eu comia […] um verdadeiro balde de comida. Ia ao banheiro com o Notícias Populares debaixo do braço e ficava uma hora cagando. Lia o NP inteiro. Na última página, tinha sempre a foto de uma gostosa, e eu socava uma bronha e depois ainda usava o jornal pra limpar a bunda”.

Gordo viveu São Paulo. Viveu várias São Paulos. A cidade e seus personagens, seus encantos e desencantos. Deve ser meio desconcertante ter vivido num lugar desde os anos 1960 e, de repente, se ver em 2021. Nos bastidores, penso que essa desilusão, quando pega um desavisado, é o que deixa as pessoas vulneráveis a gente tipo o presidente da República.

João Gordo deve ter frequentado o Mercearia. Ou pelo menos, escutado falar: “Ah, aquele bar de playba da Vila Madalena?”, diria. Bem, eu não sei João Gordo, mas o bar teve um freguês ilustre nos anos 1990: Nick Cave.

O cantor australiano não só era habitué do Mercearia, como casou no Brasil e teve um filho. Assim como o líder do Ratos de Porão, viveu uma das várias São Paulos. Num país e mundo, arrisco dizer, um pouco mais simples — ou menos angustiantes — que este emaranhado de boas lembranças que temos hoje.

Nesses anos, em que escreveu dois álbuns no país, Cave costumava ir pela manhã ao bar. Levava seu filho pequeno. Comia “Cheese pastels”, tomava algumas cervejas e um dos donos do Mercearia, Pedro, contrabandeava pirulito Chupa Chups para Luke, seu filho.

Recentemente, escreveu um curto, mas melancólico texto sobre isso:

“Aqueles dias em São Pedro [Mercearia] eram simples e bons. Foram os melhores. Agora, o bar será destruído para dar lugar a apartamentos de luxo. Eu entendo que as coisas são assim — elas vêm e vão embora — e eu sei que estamos enfrentando problemas maiores que a demolição de um pequeno bar em São Paulo. Ainda assim, um pedaço da alma da Vida Madalena se perderá. E uma parte de mim também”.

Eu, você, João Gordo e Nick Cave temos muito em comum. Queremos saber se neste mundo em constante demolição, seremos capazes de criar raízes tão especiais como as que foram embora. Ou se tudo se transformará em apenas mais um apartamento de luxo.




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