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No mar, a busca para desvendar nossas tempestades



O surfista Garret McNamara dedicou sua vida em busca de algo que pode nem existir. A onda de 30 metros, uma lenda construída no esporte ao longo de anos, nunca foi surfada — que se saiba. No surfe, se a onda não foi filmada ou fotografada é porque ela simplesmente não existiu.

McNamara, um obstinado e impulsivo surfista, foi um esportista de certa forma ordinário, até ter descoberto um improvável pico de ondas num pequeno vilarejo em Portugal. A hoje célebre Nazaré era esnobada por seus colegas de profissão, enquanto o surfista de Massachussetts estudava, articulava e organizava junto aos políticos locais uma forma de tornar essa pequena pérola um tesouro imperdível.

Ninguém imaginava que Portugal — e não Austrália, Havaí ou Califórnia — guardaria as mais violentas e perigosas ondas do planeta. Em Nazaré, as ondas vêm de toda parte, não têm sentido previsível e são capazes de (um dia, quem sabe?) alcançar os idealísticos 30 metros.

“É insurfável”, afirmava o obcecado McNamara, no excelente documentário A Onda de 100 Pés (HBO Max). Ao lado de sua esposa Nicole, documentou o que pôde e foi do céu ao inferno em sua batalha em transformar uma lenda em realidade. Não só: ele próprio numa lenda. Um verdadeiro quid pro quo com a natureza.



A vida: um segredo

O mar não pede ou deve algo a você. É simplesmente indiferente. Certamente não pediu nada de McNamara ou William Finnegan, seu contemporâneo, um jornalista de Nova York que encontrou no surfe também uma forma de colocar sua existência à prova.

Finnegan conquistou um Pulitzer em 2013 com sua autobiografia Dias Bárbaros, em que conta sua jornada de vida pela onda perfeita — talvez o deus de um universo que tem numa onda de 30 metros sua maior lenda.

Provavelmente os dois não tinham consciência dos feitos um do outro, mas Finnegan havia enxergado em Portugal um ambiente perfeito para surfar ainda nos anos 1990, enquanto a atenção do esporte se voltava para o Havaí.

“Quando nos aproximamos da arrebentação, o poder e a beleza das ondas ficaram mais evidentes. Uma série passou por nós, reluzindo e rugindo sob o sol baixo da tarde de inverno, e senti um nó na garganta de tanta emoção — uma mistura inexplicável de alegria, medo, amor, desejo e gratidão […] havíamos encontrado algo extraordinário”.

Tanto McNamara quanto William Finnegan seguiram um certo tipo de código dos surfistas, comparável em seriedade somente ao código da Terra Nostra. É a de reclamar aquele pedaço de mar somente a si. Seu deus particular. Uma extensão espiritual que ameniza o luxo de compreender a existência — ou ao menos, fazer parte daquilo que consideram ser o Universo.

McNamara fica visivelmente incomodado com o exôdo de sufistas de todo mundo à Nazaré, mesmo que tenha trabalhado arduamente para que o local virasse o principal ponto de ondas imensas no planeta. Já Finnegan faz questão de manter tudo em segredo, como se tratasse seus picos em Bali ou na Ilha da Madeira como fontes indispensáveis para exercer seu jornalismo.

Paraíso, Purgatório, inferno: é tudo aqui

“Há mais coisas entre o céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”, escreveu Shakespeare em Hamlet. Para alguns, é necessário mais que religião, meditação ou doutrinas. É preciso enfrentar a própria mortalidade. Ficar próximo daquilo que pode num estalar de dedos lhe tornar inexistente.

Nas entrelinhas, tanto o surfista quanto o jornalista entram no rol de pessoas que extrapolam os limites da filosofia ou religião para sentir na pele o intangível mistério da existência. Uma substituição do padre pelo mar — essa força pouco conhecida em sua plenitude, mas que é o mais próximo que podemos chegar de algo espiritual.

Para Valerie Taylor, uma fotógrafa marítima, essa busca foi ainda mais intensa. Taylor foi uma pioneira no mergulho e conservação dos tubarões, esses predadores tão temidos e, portanto, tão fascinantes. E essa história é retratada no documentário produzido pela Discovery, Brincando com Tubarões (Disney+).

Começou ainda nos anos 1950. Australiana, linda e aventureira, Valerie se encantou com o mar ao ser a primeira mulher a realizar pesca submarina. Foi responsável pelas primeiras filmagens de tubarões em seu habitat natural — virou uma espécie de xamã dessas criaturas.

“Eles nos entendem”, diz Valerie ao longo do documentário. Ninguém fazia o ideia do que a australiana era capaz naquela época. Ficou tão reconhecida que foi consultora de Steven Spielberg, quando o diretor filmou “Tubarão”, em 1974.

Aquele se tornaria o primeiro grande blockbuster de Hollywood e teve um efeito terrível e particularmente triste para Valerie: as pessoas passaram a temer tanto os tubarões, que passaram a persegui-los e matá-los. Na Flórida, os tubarões-mangona — inofensivos — foram varridos da costa em meio à histeria das pessoas.

Não é justo assumir que o ímpeto de personagens como esses deva-se somente à ambição de atingir reconhecimento ou destaque em suas áreas. Claro, a ambição existe. Mas, ao assumir riscos tão extremos, é como se a jornada do autoconhecimento pudesse ser partilhada por todos — as pessoas ao redor, a natureza e, por fim, eles mesmos. Essa onda insurfável em sua plenitude.

Se para Garret McNamara e Finnegan as ondas são o mais próximo que podemos chegar de uma manifestação divina, para Valerie os tubarões são as ferramentas perfeitas para tentarmos entender, em terra, o que só deve ser compreensível na hipótese de haver mesmo um plano espiritual.


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