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Dissecando os porões das startups


Ao que tudo indica, assim como o ano do desespero humano e da infelicidade coletiva em face de uma pandemia de proporção secular que assola o mundo, 2020 é também o ano dos bons roguelikes. Não só Hades ou a continuação do aclamado Spelunky 2 surgiram na mesma curta janela de tempo como a pérola desenvolvida pela Aggro Crab e publicada pela Team 17, Going Under, também chegou para dar novos ares ao gênero.

Aqui, somos colocados nos sapatos de Jackie, que acabou de ser contratada para um estágio na startup Fizzle, que abalou as estruturas dos setores alimentício e de bebidas com a criação de uma bebida-refeição. Em uma demonstração do leque de críticas e ironia com a cultura do vale do silício que recheiam o game, Jackie é encarregada de cuidar de outros afazeres. O que não é exclusivo das gigantes de São Francisco, mas algo corriqueiro de qualquer estágio. 

Assim, o jogador passa a ter de enfrentar “monstros” provenientes de outras startups que compartilham o ambiente com a Fizzle, como a Joblin, companhia que dá as faces de um Uber, com instalações invadidas por goblins de mochilas de entrega ao melhor estilo entregador ou até mesmo goblins que dirigem minicarros como… bem, como um carro Uber. 

Nos porões da Styxcoins - trocadilho com o mesmo rio do Egito, o qual segundo a mitologia é o caminho pelo qual as almas passam para a transição entre planos, guiadas por Anubis - o jogador se vê em meio a esqueletos e criaturas mineradoras, abordagem satírica ao universo das criptomoedas. Nos porões da WinkyDink você conhece uma outra espécie de Tinder, no qual a comunicação dá-se apenas com emojis. O que seria excelente, diga-se. 

A partir daí o ambiente roguelike surge como uma dungeon temática para cada companhia, tendo essas uma variedade de monstros e chefe condizentes com suas propostas. Com isso o game passa a tratar organicamente e de forma bem humorada a concepção ‘millenial’ que orbita a estrutura corporativa dessas empresas, no qual o ambiente de trabalho “casual não só na sexta-feira” impera. 

Além disso ficar claro no design dos personagens, ponto interessantíssimo desse aspecto está no próprio design dos níveis, onde vemos pôsteres espalhados pelas salas que trazem as mais cínicas e bizarras mensagens desse pensamento silícico. Tais quais o hilário pôster em uma das salas que dispõe a mensagem “você pode dormir quando morre” ou a corriqueira glorificação do café em diversos deles.

Outros dois elementos interessantes que exaltam essa noção são também demonstrados quando a personagem simplesmente larga as armas para sentar no chão e ficar no celular assim que o jogador se ausenta por um tempo dos controles. Outro, que talvez soe como forçação de barra, estão na própria escolha de uma paleta de cores coloridíssima, amplificada pelos gráficos low-poli (poligonais mas refinados), que parece exaltar esse tipo de pensamento que vigora no ambiente das startup de um paraíso. Naturalmente, a história também aprofunda essa função.

Todavia, colocando toda a ambientação um pouco de lado, Going Under se mostra também um ótimo roguelike. Os inimigos conseguem gerar o bom e comum desafio do gênero, ainda que isso seja ofuscado pela pequena imprecisão do combate, principalmente na parte de esquiva.

Fora isso, todos os outros aspectos clássicos de uma obra roguelike também mostram-se presentes no level design das salas das dungeons e progressão aleatória. O bônus fica para como a narrativa consegue ser construída em volta da ambientação proposta por esses níveis, como comentado acima.

Going Under é competente em quase tudo ao que se propõe. Não consegue usar das próprias características do gênero como Hades, por exemplo, para incrementar ou guiar a história. Exemplo disso é imaginá-lo como um jogo clássico de ação, o que não mudaria muita coisa no que diz respeito à sua narrativa. Ainda assim, é uma divertida crítica a um dos segmentos mais proeminentes da noção contemporânea do modelo corporativo, que assim como as cores do game, parecem absolutamente belas até o momento em que VOCÊ MORRE. 

Álvaro Viana

Jornalista político, tem 30 anos, apaixonado pelo mundo dos games, cinema, e o ofício de analisar esses temas de forma criativa. Trabalhou com análise de jogos para o jornal Correio Braziliense e outras publicações e edita tudo que você lê neste site. Quando sobra tempo cura memes, reclama no tuiter, e testa novos templates pra loady!

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