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A melancolia acolhedora de Fleabag


É um sentimento melancólico saber que o espaço de tempo para o surgimento de uma obra tão genial quanto Fleabag será longo. Mas se há uma série que ensina… ou melhor, mostra como o ato de lidar com a melancolia pode ser ornado por tantos outros elementos que não sejam a melancolia per se, essa série é esta. 

A riqueza do roteiro escrito pela gênia Phoebe Waller-Bridge é mostrada na sensibilidade como a obra divide a jornada de sua personagem e conseguimos nos familiarizar e apaixonar pela mesma ao longo das duas temporadas (disponíveis na Amazon Prime). 

A primeira temporada se desenrola como um presente ao espectador, o instigando desde o início a questionar a natureza daquelas escolhas da personagem principal para no fim nos fazer compreender que a jornada nos mostrava como a digestão de erros é ampla, assim como as pessoas afetadas por eles. 

A segunda dá perfeita sequência a essa lição, ao nos envolver na história de uma personagem a qual já parecia uma amiga próxima do espectador. Com isso, Fleabag passa a abordar a complexidade das fases da vida e como o drama de lidar consigo mesmo pode ser foda.

Creio que a forma pela qual Fleabag - a personagem - passa a tornar-se apaixonante não seria a mesma caso a protagonista não fosse interpretada por sua própria roteirista. Assim, Bridge mostra não só uma naturalidade e sutileza nas quebras de quarta parede que acontecem ao longo da narrativa como sua própria atuação é uma amplificação da sensibilidade do que escreve no esqueleto daquelas histórias.

Exemplos disso são evidentes nos momentos em que a personagem mira a câmera brevemente, seja por um segundo, como se o espectador fosse cúmplice do que estaria acontecendo naqueles momentos, ou mesmo uma testemunha ao mirar uma evidente busca pela afirmação de quem está vendo. Isso quando a personagem não se justifica para quem a assiste. Um uso absurdamente oposto à forçação de barra de Millie Bobby-Brown em Enola Holmes, que parece exalar um “carisma falso” encubado em instagram, para citar exemplo mais recente.

O ápice dessa forma como elemento narrativo destacável se dá no primeiro episódio da segunda temporada, quando essa quebra torna-se uma quase-fuga da conversa sufocante que ocorre naquela passagem.

Aqui a estrela, porém, é o roteiro. Consegue equilibrar o drama com personagens cativantes, ainda que alguns nos façam querer jogar o controle na TV - o que é um bom sinal… caso você não jogue o controle na TV… É essa característica que dita a genialidade de Fleabag ao tratar de forma sutil e diametralmente pontual e incômoda temas absolutamente mundanos e, acima de tudo, da experiência humana em seus extremos. 

O episódio 4 da primeira temporada é um exemplo claro disso ao fazer uma clara crítica de como os homens lidam com problemas em um retiro absolutamente satírico e o retiro “feminino” que Fleabag e Claire se isolam a forma como as mulheres foram acostumadas a lidar com seus problemas também. Isso sempre de uma forma hilariante com momentos que inspiram as gargalhadas. 

Vale destaque ainda para o espetacular elenco da obra, encabeçado por Waller-Bridge mas belamente dividido com a ótima Sian Clifford (Claire) e a renomada Olivia Colman (Godmother), em uma das melhores demonstrações de passivo-agressividade existentes na existência.

Fleabag é hilariante, melancólica, incômoda, irritante, e a lista de artigos poderia claramente parir uma análise por si só. É não somente um equilíbrio perfeito no que muitas séries falham em vários aspectos como a balança entre drama e comédia ou a quebra da quarta parede, mas também uma experiência acolhedora originada por uma mente brilhante.

Álvaro Viana

Jornalista político, tem 30 anos, apaixonado pelo mundo dos games, cinema, e o ofício de analisar esses temas de forma criativa. Trabalhou com análise de jogos para o jornal Correio Braziliense e outras publicações e edita tudo que você lê neste site. Quando sobra tempo cura memes, reclama no tuiter, e testa novos templates pra loady!

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