NOTÍCIAS

The Boys e a fantasia de Nietzsche


Em Assim Disse Zaratustra, Nietzsche apresentou ao leitor o conceito do ubermensch (além-homem, super-homem), pelo qual orbitam as noções de que, de forma simplista, a meta da experiência humana deve ser individual a despeito da coletividade uma vez que, na concepção do filósofo, a coletividade vista como objetivo de desenvolvimento seria inalcançável. A antítese dessa noção, ainda segundo o pensador alemão, seria ainda o “último homem”, este diferente do “além”, cuja ausência de princípios significativos para o próprio desenvolvimento culminariam em um indivíduo vago, que busca uma compensação pelo consumo, e não pela criação. Melhor, reflete a ausência de um desenvolvimento próprio no ressentimento com o mundo externo. 

E se há uma obra que esbarra em alguns desses conceitos e até brinca com eles, essa se chama The Boys.

Minha ignorância me impede saber qual a influência desse clássico ponto da filosofia ocidental para o que temos hoje por super-herois, no entanto isso já pode ser concebido com o que temos desse ideal nos dias atuais, principalmente com a virada de mesa ocasionada pelo universo cinematográfico dos herois da Marvel: são seres com habilidades únicas, superiores, que nunca sucumbem aos desejos, às ambiguidades morais e sempre mantém um caráter imaculado. É basicamente a idealização do que não é humano, do que até mesmo o mais elevado dos monges tibetanos que estudam o caminho para uma elevação divina através da libertação da mente devem ter dificuldade em alcançar. É algo anormal, não natural, oposto à natureza humana. 

E o principal mérito em The Boys é seu roteiro saber exatamente como destruir aos poucos esses conceitos, por vezes inclusive com momentos chocantes e hilários, tudo para convergir em uma noção simples pela qual a série se desenvolve: a da fragilidade humana. Algo que é a relação mais profunda e crua existente na mente humana, noção incitadora dos mais incômodos ataques de pânico e as mais desafiadoras batalhas da experiência da vida. 

Desde os primeiros minutos isso é construído de forma visceral, quando um super-humano literalmente explode outro tal qual um balão de sangue – analogia reforçada aos montes pelos personagens “supes” da série- em questão de segundos. É algo fantástico, exagerado, quase satírico, mas o principal apelo é o de que iss seria uma possibilidade absolutamente real.

É alimentando esse raciocínio com demonstrações cada vez mais próximas, ainda que hiperbólicas, sobre a relação do ser humano com seus pares, que The Boys vai construindo-se como uma obra prima. Uma abordagem que vai na contramão do que o espectador acostumou-se a entender como super-herois, sendo estes muito mais reais, menos príncipes das histórias da Disney e mais príncipes das histórias dos irmãos Grimm.


Isso é ampliado quando a série também faz um paralelo com o contexto comportamental e político da atualidade, principalmente com passagens absurdas, como uma equipe de mídias sociais preparada para divulgar os atos heroicos dos super-humanos ou até mesmo os constantes acenos de personagens principais com o chorume do pensamento reacionário republicano estadunidense.

Sendo assim, o espectador vê-se tentado a torcer pelos “Boys”, o grupo de – na série – seres humanos sem quaisquer habilidades sobrehumanas, que dão a si a responsabilidade de acabar com a raça do que a série passa como os piores tipos de indivíduos, concentrados principalmente naqueles que têm poderes. Essa “inversão” de valores que, na verdade seria impreciso nomear de inversão, é que aproxima esses personagens.

Deus está morto

Essa construção executada com maestria durante a primeira temporada da série dá lugar ao desenvolvimento pessoal durante a segunda. Pontos que exemplificam isso são não só os últimos momentos de Hughie durante a temporada mas também seu diálogo com o superheroi “Lamplighter”, o qual sem papas na língua ele diz ser o pior tipo de ser humano existente. 

E se, nesse quesito, segundo a noção nietzschiana, Hughie seria o verdadeiro super-homem na série, o contrário acontece com a clara homenagem ao Superhomem na série, na capa do personagem Homelander (Antony Starr). O virtuoso super que ao longo da primeira temporada vai se mostrando um genocida psicopata chega ao ápice durante a segunda parte da série. 

Ápice de loucura que, inclusive pode ser visto ao final da segunda temporada. Homelander exemplifica como os roteiristas dessa série merecem ser aplaudidos de pé. Não há um personagem mal desenvolvido em The Boys. No caso de Homelander, um personagem complexo e incrivelmente crível. O homem mais poderoso, que em questão de segundos, pelo que a série mostra, poderia destruir o universo ou qualquer um em questão de segundos, é também a personalidade mais quebradiça.

O aspecto que o torna um personagem complexo e rico é que, diferente da criptonita, a fraqueza de Homelander é a de qualquer ser humano vivo, o medo da solidão, o desespero de não ser amado. Claro que nesse caso, potencializado por mil e com requintes de crueldade. A metáfora mais clara e bela que a série propõe é no principal símbolo da experiência da psique humana, ao fazer a obsessão do personagem ser o carinho materno, a provisão do amor da mãe, que no caso dele é evidentemente misturada com um desejo sexual como estamos acostumados a conceber.

Nesse aspecto, ao tempo em que Hughie (Jack Quaid), na visão do pensador alemão poderia ser o superhomem, aqui Homelander faria os ares do último homem. Ele exemplifica cristalinamente como a ausência de um desenvolvimento próprio, tal qual o experiemento científico que é, reflete em um indivíduo ressentido com o mundo externo e a humanidade. Um misto de complexo de inferioridade com superioridade. Um personagem absolutamente genial.

É justamente por essa complexidade que, principalmente da metade da 1ª para frente, The Boys vai se tornando uma experiência quase agoniante de ser vista. Em determinados momentos o paralelo com jogos de terror como Amnesia ou Alien Isolation, onde o desespero por haver sempre a ameaça da destruição na esquina é real. Esse medo de Homelander entrar em cena explodindo um personagem ao meio passou a ser constante. 

Felizmente, no melhor episódio da segunda temporada, quando achamos que estávamos seguros, inclusive após um quadro com a expressão fria de Homelander, os produtores de The Boys foram possuídos pelos espíritos do Casamento Vermelho em Game of Thrones e criaram uma cena tão chocante quanto. E não foi a primeira vez que a série fez isso, o que é sensacional.

The Boys é não só uma contravenção ao que conhecíamos como super-herois. É uma demonstração do quanto a experiência e a noção do ser humano acerca de sua própria fragilidade conseguem produzir um produto magnífico, moderno e absolutamente divertido.

Álvaro Viana

Jornalista político, tem 30 anos, apaixonado pelo mundo dos games, cinema, e o ofício de analisar esses temas de forma criativa. Trabalhou com análise de jogos para o jornal Correio Braziliense e outras publicações e edita tudo que você lê neste site. Quando sobra tempo cura memes, reclama no tuiter, e testa novos templates pra loady!

Postagem Anterior Próxima Postagem

Formulário de contato