Ao longo das últimas publicações, destaquei a insistência da indústria em apostar em sistemas já esgotados, principalmente em relação a jogos de mundo aberto, resultando inclusive numa saturação absoluta em mecânicas.
Essa característica desgastada não acarreta apenas na multiplicação de conteúdos - ainda que cada vez menos completos e proveitosos - mas também em um sistema de produção igualmente avassalador para quem está do outro lado. É por isso que hoje na indústria discute-se a dinâmica torpe no desenvolvimento de jogos e a rentabilidade dessa sistemática.
O que nos leva a A Short Hike, jogo desenvolvido pelo canadense Adam Robinson-Yu e lançado este mês para o Nintendo Switch. Se trata de um título breve e que foi concebido durante um momento no qual o próprio Yu se sentia “worn out (esgotado)” enquanto trabalhava em outro projeto independente, um RPG muito charmoso, diga-se. Com isso, Adam concretizou em um jogo uma crítica que eu imagino não ser deliberada e que, ao invés de ser escrita ou medida em imagens, é escancarada nas mecânicas e na alma de seu jogo. Justamente por isso, muito bem-vinda.Aqui, na curta porém bem definida história, jogamos como Claire, uma passarinha que vai para uma reserva natural enquanto sua mãe passa por uma cirurgia na cidade. Essa ambiente faz com que passemos a explorar o cenário como forma de esquecer um pouco essa turbulência durante uma breve caminhada - daí o título.
Nesse contexto, o cerne do jogo passa a ser a exploração da reserva natural, sem indicativo de missões ou a necessidade de coletar muitos itens. O único objetivo declarado nessa obra torna-se justamente a sua recompensa: aproveitar a beleza daqueles cenários em uma mistura de low-poly (uma espécie de arte com polígonos, só que melhor trabalhada) e pixels (o que pode ser redefinido nas configurações).
É aqui onde habita a crítica necessária de ser levantada no momento atual. É quase inevitável cair em uma espécie de pieguismo, mas é importante notar que os aspectos essenciais que fazem de Hike único são os que justamente vão contra a maré do que a maior parte dos jogos que conhecemos ou jogamos hoje insistem em fazer.
Por que as principais empresas insistem em mecânicas repetitivas - e aqui serve para qualquer gênero - ou em projetos cada vez mais magnânimos? A resposta é óbvia, mas não quero parafrasear Marx em uma análise de jogo. Essas mecânicas ou a magnitude objetivada por essas empresas também são parte de um público ávido por essa espécie de escapismo.
O mais importante a se destacar disso é o reflexo dessa ordenação na indústria. Não deixa de ser surpreendente a eclosão da série de relatos de funcionários da indústria sobre assédio moral e psicológico, longas jornadas de trabalho, precarização de direitos trabalhistas ou até mesmo assédio sexual. Pesquise Blizzard, Activision e Ubisoft accusations e veja você mesmo os relatos.E é só levantar um histórico recente dos jogos dessas empresas para chegar à conclusão de que nada disso necessariamente reflete em bons jogos. Na maioria dos casos muito pelo contrário.
Esses episódios podem, de fato, serem filhotes malditos do que muitos membros da indústria dos videogames teorizam nas redes sociais, sejam elas oriundas de política empresarial, sejam da própria natureza do sistema em que vivemos, mas ocasionam num comportamento muito semelhante entre todas essas companhias, e resultam no que vemos nas prateleiras e no que estamos jogando.
É por isso que a ironia mostrou-se cristalina ao ler sobre o que motivou Yu a desenvolver esse jogo. Mesmo que seja por um desgaste “autoinduzido” ao trabalhar em um projeto próprio, é um jogo que reflete em seus próprios atributos um sistema simples que enriquece a sua proposta e vai contra o que a maioria dos títulos mostram. Sua única recompensa sólida se dá em penas douradas, que acabam sendo uma espécie de barra de energia. Quanto mais penas você coleta, mais você consegue escalar e voar e mais paisagens belas você consegue ver.
Os diálogos com os outros animais que estão explorando o “pico do gavião” também parecem emanar essa alma leve do jogo, com conversas engraçadíssimas à lá Paper Mario. Em determinado momento, ao falar excessivamente com a personagem que lhe ensina o botão que você pressiona para planar, ela fica irritada e grita "NOOOO, NOOOO NO MORE".
Além de ser um jogo espirituoso, bonito, e bem feito, A Short Hike é também uma válvula de escape incrível para quem quer dar uma freada no ritmo frenético que vivemos - principalmente num contexto de a quantidade e a agilidade é sempre a meta primordial. Um reflexo claro disso é da atual fase vivida pela indústria.
É também por isso um jogo fundamental, que evidencia em seus próprios atributos uma crítica não deliberada, origem de um esgotamento justamente pelo ofício de... desenvolver jogos.
{full_page}