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O cinismo oitentista estadunidense em Stranger Things


Mesmo que na terceira temporada o recheio de Stranger Things mantenha-se centrado em conspirações insanas, acenos constantes a clássicos da cultura pop dos anos 80 e às próprias inspirações estéticas e narrativas nessas obras, o que mais chama atenção da série, que este ano foi indicada para a categoria de melhor drama no Emmy, é sua base consolidada nas referências oitentistas, incluindo a própria noção extremamente nacionalista daquela época, algo que ainda nos dias de hoje tem enorme apelo. 

Contudo a série mantém neste terceiro segmento as características que atraíram os espectadores nas duas temporadas passadas, sobretudo a narrativa voltada às rápidas mudanças presentes na transição da infância para a adolescência, ponto mais interessante da série em relação ao desenvolvimento dos personagens. Esse elemento fica ainda mais atraente aliado a superpoderes e o constante suspense conspiratório que permeia o enredo.

Aqui, após uma segunda temporada na qual vemos um maior desenvolvimento em Eleven (Milli Bobby Brown), quando esta passa a descobrir fragmentos de seu passado e criar uma identidade própria no novo ambiente familiar, temos Brown personificando um dos destaques da série. Nesta temporada, além de ganhar literalmente cores em seu figurino - e isto ser um bem-vindo acerto narrativo -, a personagem passa a mostrar o lado mais mundano, fruto de como a narrativa entrelaça os personagens. De um lado, o acréscimo da amizade com Max (Sadie Sink), de outro, a continuidade de um recém amor; e por fim, o desenvolvimento próprio.

Enquanto a adição da amizade de Max e Eleven constrói alguns dos melhores momentos desta temporada, as atribulações consequentes do conflito com seus namorados, Mike (Finn Wolfhard) e Lucas (Caleb McLaughlin), também são bem construídas. 

A série demonstra eficiência em equilibrar o desenvolvimento de seus personagens nos momentos - poucos, diga-se - em que passamos a ver a dissonância entre Will (Noah Schnapp), ainda no crepúsculo de sua infância, e seus comparsas .

Outro destaque desta terceira temporada está em Billy (Dacre Montgomery), o “vilão” da vez. Com uma atuação impecável, Montgomery consegue passar o incômodo constante causado por uma força avassaladora, concentrando em si os momentos mais desconfortáveis da temporada.O que não é difícil. 

Por mais que o lado conspiratório e sombrio seja presente em Stranger Things, a narrativa da última temporada até agora orbita em torno da temática da mudança, seja ela desmembrada no sentido de evolução, amadurecimento, perda, ou a constante da vida que ninguém consegue nomear. Junto a isso, a ambientação da cidade de Hawkins também eleva essa percepção ao ser mostrada como uma cidade quase fantasma após a abertura do shopping naquelas terras. 

De volta aos anos 80

Stranger Things dá seguimento às constantes referências à década de 1980, fator que muitos consideram a motivação de seu sucesso. Durante a terceira temporada, isso fica claro nos acenos a elementos da época, como os próprios filmes slashers emanados nos momentos em que o “mind flayer” está perseguindo algum dos personagens em sua forma humana. 

O quinto episódio demonstra bem isso na sequência do hospital, quando o vilão torna-se quase indestrutível em uma perseguição num ambiente claustrofóbico que remete às abandonadas casas de acampamento em ‘slashers’. 

Outra indicação forte dessa fonte está inclusive nas particulares posições de câmera durante o oitavo episódio, quando a série usa quase os mesmos enquadramentos que a cena dos velociraptors na cozinha em Jurassic Park - com direito até à olhadinha pra ver se tá tudo ok nos arredores.

Um momento particular torna essas referências mais evidentes. Em um dos últimos episódios, alguns personagens escondem-se numa sala de cinema que reproduz De Volta Para o Futuro, quando a própria série passa a utilizar, em alguns momentos, a trilha sonora do clássico. Todos esses elementos não só acrescentam, como continuam personificando os pilares da série desde sua concepção, seja resultado de algoritmos ou não.

O que incomoda, no entanto, é a excessiva inclusão de product placements da Coca-Cola durante a série, chegando ao feito de separar quase dois minutos inteiros do seriado para Mike e Lucas  entoarem uma propaganda da “nova” coca, seja lá qual ela for. 

Guerra Fria

E é claro que tratando-se de uma série norte-americana ambientada nos anos 1980, a representação da Guerra Fria não seria ignorada. O que acontece aqui também é um mérito de Stranger Things. E não sei se isso é bom ou ruim. Ao surgir com a proposta de elucidar esse espírito oitentista, a série também invoca alguns vícios estadunidenses que poderiam ficar enterrados junto a Ronald Reagan.


No atual momento do mundo, no qual observamos o resultado do ultranacionalismo escancarado em três mortes por conta de protestos antirracistas e nenhuma punição consequente disso ou nas diversas demonstrações da estrutura de um Estado falho que é o norte-americano, é inevitável não focar na problemática da propaganda nacionalista à que a série se submete, sempre evidenciando a cultura estadunidense como subterfúgio. Um deles, inclusive, pode ser visto ao lado, e não preciso dizer muito. 

Os momentos mais cômicos de propaganda norte-americano ocorrem quando a série retrata o exército soviético que, do dia para a noite, replica o projeto do governo norte-americano (da temporada passada) e busca usar a criatura mais poderosa de um universo paralelo como arma. Ou até mesmo da forma como se refere aos “commies” e como retrata a persona do cientista soviético que ama hambúrguer, pica-pau, e fica deslumbrado com o festival de 4 de julho (independência dos EUA) na cidade fictícia de Hawkins. 

Um dos personagens principais da série, aliás, é o próprio shopping Starcourt, e escancara a natureza estadunidense da obra. É nele que, nos momentos finais da temporada, os grandessíssimos e imaculados heróis do exército norte-americano chegam para salvar o dia... ou a noite.

Em sua terceira temporada, Stranger Things consegue cumprir tudo a que se propõe. É o resultado do conhecimento prévio dos personagens que passamos a ter afinidade nas temporadas passadas e uma polida demonstração das mudanças que acontecem com eles. É também um show de referência à cultura norte-americana dos anos 80, ainda que isso signifique uma continuidade do questionável legado de Reagan.

Álvaro Viana

Jornalista político, tem 30 anos, apaixonado pelo mundo dos games, cinema, e o ofício de analisar esses temas de forma criativa. Trabalhou com análise de jogos para o jornal Correio Braziliense e outras publicações e edita tudo que você lê neste site. Quando sobra tempo cura memes, reclama no tuiter, e testa novos templates pra loady!

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