*Este texto está recheado com spoilers de Hereditário e Midsommar. Cuidado e não olhe para trás.
Se há alguns meses atrás alguém me perguntasse se eu gosto de filmes de terror a resposta seria uma risada nervosa seguida de um cabeceio negativo e bem assertivo. Após ter acabado de ver Midsommar em algum momento desta semana, no entanto, esse sentimento virou de cabeça pra baixo, tal qual a liberdade estilística abraçada pelos novos diretores que vêm redefinindo as características ortodoxas desse "gênero". É por isso que agora posso afirmar que Ari Aster me motivou a gostar dessa nova espécie por sua ousada e interessante abordagem de temas comuns com o ornamento estético do terror.
Equinócio
Tanto em Midsommar, Hereditário, ou até o seus próprio curtas Munchhausen e The Strange Thing About the Johnsons, Aster usa-se da aparência intimidante do gênero para intensificar o real cerne temático de suas obras: o drama e o comportamento humano em frente às instituições, sejam elas familiares, conjugais e as disfunções que as permeiam, sejam elas abusos, traumas ou a quebra de tabus. Mesmo uma breve introdução a essas histórias suscita essa familiaridade.
Ambos os curtas-metragens que deram a partida na carreira do diretor tratam sobre abusos em suas formas mais cruas e vis dentro do próprio núcleo familiar, no qual as ações tomadas ou por progênitos (Johnsons) ou progenitora (Munchhausen) têm consequência direta - e por que não impactante - na realidade e vida de seus consanguíneos.
A exploração dessa temática parece ainda mais crua e naturalmente sombria em Hereditário, onde os dramas e os transtornos familiares parecem títeres de uma seita das cabulosa. Isso é demonstrado ainda na cinematografia, onde os cenários, mesmo alargados a fim de dar a ilusão da maquete quase literal na qual a família mora.
Mesmo que os cômodos sejam alongados ainda há uma sensação de incômodo claustrofóbico ao observar algumas das cenas no filme. A primeira cena da obra exemplifica isso bem, a qual vemos um close-up em um quarto da maquete feita por Annie (Toni Collete), que em uma excelente transição acaba se mostrando um dos quartos da família. Uma contraposição interessante, uma vez que close-ups seguem convencionalmente o propósito de aproximar objetos pequenos.
Essas transições orgânicas e incomuns, inclusive, podem ser consideradas uma das principais características de Aster. Um indicativo da preocupação não só pela construção do suspense ou o contra clímax comum do gênero, com os jumpscares e choques deliberados ao espectador. Em uma das cenas de Midsommar, por exemplo, Aster usa a transição rápida para uma cabeça totalmente desfigurada após o ritual do Ättestupa, que pode muito bem ser confundida com um jumpscare, mas logo desvirtua essa sensação ao direcionar os olhos do espectador a algo que é absurda e cruelmente natural e diametralmente oposto ao medo do desconhecido metafísico.
Solstício
Em Midsommar acompanhamos a história da já instável Dani (Florence Pugh), uma estudante de psicologia que, após um brutal trauma familiar, apoia-se em um relacionamento ainda mais desequilibrado, em seu abjeto namorado, Christian (Jack Reynor). Após receberem um convite de um dos colegas de Christian, Pelle (Vilhelm Blomgren), Dani vê-se em meio a um culto que rege seus costumes de acordo com as tradições escandinavas.
Com Midsommar Aster colocou a si um desafio de criar um “terror” mais psicológico e gutural do que o conceito clássico de terror sem um dos principais artifícios desses filmes: a escuridão e a tensão com o que pode existir além do natural. Por outro lado, Midsommar não esconde nada e usa a claridade dos meses da Hungria (Budapeste), onde foi filmado, para concentrar em si o aspecto de ser extremamente real, a ponto do campo da realidade tornar-se na maior parte das vezes intragável.
Essa característica é paralela à vivência da própria personagem realizada por Pugh, que em sua impecável atuação ganha ainda mais camadas. Ao longo da metragem Aster usa elementos que elevam essa busca pela dissonância da realidade, sejam de Dani ou de Chris, como na cena em que ele está com os amigos, em que vemos em enquadramento apenas seu reflexo no espelho. A mesma construção repete-se em um dos diálogos mais assertivos ao elucidar a dinâmica quebradiça do relacionamento dele e Dani.
Não só a instabilidade de Dani como a dinâmica da passagem de cenas em transições rápidas denotam aquela bizarra apatia que sucede um trauma demonstrada nesses períodos a serem vividos pela personagem, como a passagem da viagem de carro ou a espetacular transição entre a porta do banheiro e do banheiro do avião. Há também algumas constatações mais óbvias mas não menos importantes que acenam ao espectador o que está por vir, como a turbulência que pode ser vista na janela do avião ou a inversão da câmera na rodovia a caminho da congregação, no qual o céu toma o papel de estrada, e vice-versa.A partir do momento em que o grupo chega à comuna é quando as coisas começam a desandar para os personagens, tanto na história quanto estilisticamente. A fotografia nessa porção é belíssima e bem construída. Fica então quase inequívoca a constatação da farsa que está sendo passada aos visitantes e ao observador. E como uma cebola ou como um mestre da narrativa (escolha a melhor definição), Midsommar vai sendo revelado em camadas.
Atrelado a isso, os ângulos da vila em câmera alta, os figurinos brancos, a beleza nas canções e na orientação quase perfeccionista em cenas que evidenciam os desenhos de runas revelam não só uma comunidade bem organizada como também a busca e inevitável questionamento sobre o limite humano na procura pelo etéreo.
É aqui, juntando essas impressões com os traumas vividos recentemente por sua personagem que Pugh concretiza uma atuação profunda e vívida, tal qual o choque causado com a exposição aos costumes daquela comunidade.
O uso do relacionamento em Midsommar, a despeito das obras anteriores de Aster, serve como ponta de lança para algo ainda mais extremo. Se de um lado o preocupante era o distanciamento de Christian, o relacionamento inalcançável e passivo com a irmã e a falta de carinho, o excesso e a exposição da realidade passam a ser aproximados de Dani em sua forma mais crua. A bizarra e genial sequência do rito de concretização dela como a rainha de maio e as cenas subsequentes são evidências disso.
Por fim, há o contraste da jornada interna da personagem em seu figurino na cena final, que assim como o ritual e a sua própria idade - aos 27, está em seu próprio “midsummer” - fazem não só a analogia materialista existente na metragem mas denotam uma fragilidade ao questionamento mínimo. Tanto brevemente depois Dani aparece tentando fugir de seu posto mas incapacitada por seu próprio e belo ornamento, uma das cenas mais incômodas - porém memoráveis - do filme.
Midsommar é inovador, esteticamente contraditório ao gênero e absolutamente preciso ao criar uma estética própria para inserir o que seria simplista de categorizar somente como terror. Estaria mais para algo como terror-realista-psicológico. É constantemente incômodo mas ainda assim cria momentos visualmente memoráveis, ainda que perturbadores, algo que relembra um pouco a dança dos mortos no Sétimo Selo de Bergman. O que é um feito e tanto e faz com que a única ansiedade existente ao longo da metragem não tenha a ver com demônios, espíritos ou monstros, mas sim com a poderosa noção do que é evidente no campo da realidade humana.