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Essa grama de verão em Ghost of Tsushima


Eu sempre quis jogar um jogo de samurai ambientado no Japão feudal. E após os créditos rolarem ao finalizar Ghost of Tsushima, não sei se foi isso o que havia acontecido. Justiça seja feita, o panteão de títulos que bebem dessa fonte existem, mas fora da ambientação alinhada com o realismo do período feudal existente no título da Sucker Punch. Samurai Western (2005), por exemplo, coloca você na pele de um samurai dentro do velho oeste (?). O que é incrível, mas foge um pouco do que é colocado aqui.

A estranheza causada em Ghost, que se constroi em uma fidelidade detalhada e bela num Japão em seu período feudal se dá muito porque a interessante história, essencialmente uma releitura do bushido - código de honra dos samurais - anda em dessincronia com a jogabilidade. Para um jogo que leva em si a cifra de uma ‘experiência samurai’ em mundo aberto e foi anunciado como tal, ele trilha um caminho confuso ao sacrificar parte dessa experiência para dar lugar às mecânicas de furtividade. O que já foi visto em centenas de open worlds anteriores.

Neste caso, controlamos o samurai Jin Sakai, sobrinho pupilo do daiymio - senhor das terras - de Tsushima, Shimura. Após a invasão mongol e o massacre de grande parte do exército de guerreiros locais, Sakai vê-se obrigado a reunir uma contraofensiva para proteger seu lar, juntando aliados para, primeiro, resgatar um companheiro dos inimigos e posteriormente eliminar as forças mongois que já habitam toda a ilha de Tshushima. Ao longo da jornada, Sakai acaba quebrando o ‘código de honra’ samurai e usando técnicas sorrateiras consideradas obscenas por seus iguais, tornando-se o fantasma da ilha. Daí o título.

A relação não só fraternal de Jin e Lorde Shimura, mas como mestre e aprendiz, estrutura a ligação emocional do personagem principal. Em cima dessa ambientação o título pinça uma discussão matriz relacionada ao bushido sobre qual o limite da defesa e da servidão à honra, uma vez que esse mesmo dogma pode significar a morte de seus iguais em meio ao terror de uma invasão de uma força exterior que parece implacável.

Os momentos iniciais em Ghost of Tsushima certamente são os mais legais. Há um ar de originalidade que é prolongado com o que é o ponto mais divertido do jogo: um combate precisamente responsivo e - na medida do possível - belo, beleza que ganha nuances clássicas quando essas lutas são ambientadas nos cenários encantadores de Tsushima, enriquecidos pela colorida e peculiar flora japonesa. 

Isso é reforçado ainda mais em momentos específicos como os confrontos, uma opção do jogo que te permite não esgueirar e matar os inimigos silenciosamente, mas sim fazer o que os jovens chamam hoje em dia de “chamar pra um x1”. Nesse momento, o jogo pede para você segurar um botão e, ao perceber a movimentação do oponente, soltá-lo, fazendo Jin eliminar o inimigo com um golpe rápido com sua katana. O que faz isso ser mais legal ainda é que dá para eliminar vários inimigos em sequência. Não há nada mais ‘samurai badass’ do que isso…

Esse, inclusive, é um dos vários aspectos do sentimento de estar vivendo em um filme samurai, feito deliberado pela Sucker Punch e que pode ser notado nos momentos que precedem os combates, com o clássico stand-off que inspirou as tradicionais cenas de duelo de pistola nos filmes de bangue bangue. O jogo tem até mesmo um modo próprio chamado Kurosawa, que aplica um filtro preto e branco granulado, como nos clássicos filmes do mito da cinematografia nipônica.

Outro modo que intensifica essa sensação se dá no impecável modo fotográfico introduzido em Tsushima. É uma mecânica muito mais detalhada do que estamos acostumados a ver em outros títulos, que te permite não só alterar os filtros, exposição, profundidade, mas também detalhes mais específicos como a intensidade do vento ou até mesmo quais partículas estão ambientando a cena. É decerto um dos momentos mais proeminentes no título.


Tudo que resta

Quando a parte mais “samurai” da aventura vai perdendo espaço para as mecânicas de stealth - furtividade - é quando Ghost of Tsushima torna-se mais frustrante. Uma contrabalança disso é que essa mudança pelo menos é compensada na história, quando se apresentam os questionamentos e desdobramentos sobre a “perda” da moral de Jin como um samurai.

Em determinado ponto a estrutura jogável do título torna-se formulaica, o que inclusive suscita o questionamento sobre a limitação estrutural de jogos em mundo aberto, que neste momento parece instaurar-se em um impasse. Em Ghost, isso se dá com demonstrações rotineiras em jogos do gênero como as já conhecidas missões de “investigar”, cena que quase sempre é acompanhada pela etapa de seguir pegadas no chão ou até mesmo a ressurreição das missões de seguir determinados alvos, uma cortesia dos idos de 2009. 

As atividades secundárias, no entanto, apresentam algumas mudanças, por mais que ainda sejam repetitivas, outra maldição do gênero. Os momentos de reflexão de Jin nas fontes termais, por exemplo, são uma recompensa adicional e distinta da maioria dos colecionáveis, e proporciona uma vitrine interessante acerca dos momentos pessoais do protagonista em pensamentos mais mundanos como " eu queria uma companhia aqui" e "pare de pensar um pouco". Nesse âmbito, há também como achar tocas de raposas, que te levam a mini santuários e também tem como encontrar santuários maiores, que te premiam com amuletos que dão habilidades adicionais na jogabilidade.

Outro exemplo disso está na excelente incrementação que lhe permite compor haikus em pontos específicos do mapa. Isso traz para o personagem e para o jogo um contraste na harmonia e reflexão interna em meio ao caos que ocorre no mundo externo na obra.

A progressão do personagem também é um dos momentos divertidos do jogo. Jin pode aprender vários movimentos com sua katana dentro de quatro posturas diferentes, cada uma mais eficaz contra um tipo específico de inimigo. Isso dá profundidade ao combate e é certamente um ponto favorável do título. Essa progressividade também pode ser vista na evolução de armaduras, o que leva a discussão a outro ponto.

O detalhismo e a beleza de Ghost of Tsushima não são únicas a seu cenário. O desenho de armaduras e armas protagonizam os destaques do game, com uma fidelidade absoluta a modelos da vida real, o que apoia a ambientação. A mudança cosmética de armaduras e katanas é uma outra parte das atividades adicionais do jogo. Alguns chapéus e modelos de katana podem ser encontrados dentro do mapa de Tsushima, inentivo aceitável dado o contexto. 

Certamente o destaque principal dessas atividades secundárias está nos “contos míticos”, um tipo de missão paralela no game. Cada uma dessas missões é precedida por um conto animado, em ukiyoe - estilo de arte japonesa - sobre uma lenda de um samurai que te bonifica com uma habilidade ou armadura única, que ao final do conto podem ser suas. 

Algumas das mais interessantes são as lendas de Shigenori, um dos espadachins mais rápidos de Tsushima, que combateu e venceu ‘lobos da tempestade’ por conta de sua rapidez com a espada, e a lenda de Gosaku, um fazendeiro que encontrou uma armadura samurai que lhe concedeu habilidades ilustres para defender sua vila. A armadura é, então, guardada a seis chaves pelos fazendeiros de Tsushima, que aguardam um samurai digno de tê-la.

Essas missões adicionais mostram o potencial absoluto que permeia Ghost of Tsushima, quando o folclore e o misticismo se aliam ao charme da precisão da mitologia japonesa e misturados com a jogabilidade.


Dos sonhos dos guerreiros

Entre os pontos negativos do game estão sua confusa câmera, que em momentos chega a atrapalhar os confrontos e combates do jogo e uma outra parte do vício de jogos de mundo aberto, um sistema opressivo de acúmulo de recursos para melhoria dos seus equipamentos. 

Outra estranheza de Ghost of Tsushima está na mecânica de navegação do mundo, que parece travada. Isso é minimizado com o gancho (alou Sekiro!) e evidenciado em percursos até os santuários, que funcionam mais ou menos como percursos de escalada num modelo que acena aos jogos de plataforma. Essa mecânica meio desajeitada também faz com que o outro tipo de jogabilidade, a furtividade do ‘fantasma’, também seja menos proveitosa. 

E é aí que parte mais frustrante do game aparece, com os bugs. Um, especificamente, te impede de sair quando está se esgueirando embaixo de algum lugar caso você tenha deixado seu PS4 em modo stand-by e retome o jogo. Uma dica: se isso rolar com você, gire a alavanca da câmera para dentro e continue movimentando para fora. Viu? Até explicar uma solução para esse bug é ridículo.

Para quem começou a geração com inFamous: Second Son - que curiosamente, também é uma série que sempre trouxe essa questão da dualidade da honra em sua jogabilidade, e um dos meus jogos preferidos, a Sucker Punch mostrou uma evolução interessante com Ghost of Tsushima. Principalmente em relação à história, que precisa ser jogada para ser aproveitada. Todavia como um jogo que tem a premissa de ser samurai, a furtividade que aparece como aspecto central da jogabilidade, parece fazer um desfavor. Ainda assim, é uma experiência interessante ver como a Sucker Punch pontuou um título no início e outro às vésperas do fim de uma geração. Acaso que inspira uma curiosidade sobre o que vem pela frente. 

*Título e subtítulos da análise parafraseiam o haiku “Natsukusa ya/ Tsuwamonodomo ga/ Yume no ato”, em Takadachi, Otsu - circa 1689

Álvaro Viana

Jornalista político, tem 30 anos, apaixonado pelo mundo dos games, cinema, e o ofício de analisar esses temas de forma criativa. Trabalhou com análise de jogos para o jornal Correio Braziliense e outras publicações e edita tudo que você lê neste site. Quando sobra tempo cura memes, reclama no tuiter, e testa novos templates pra loady!

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