Aplaudido nos principais festivais internacionais, aclamado pela crítica e alçado a favorito ao Oscar 2022, Ataque dos Cães (Netflix) é um daqueles filmes em que tudo parece funcionar perfeitamente.
A direção de Jane Campion é primorosa, a fotografia idem, as atuações são impecáveis - Benedict Cumberbatch em sua melhor atuação na carreira -, e a história é tão poderosa como anuncia o título em inglês: The Power Of The Dog (O poder do cão, no literal).
Adaptado da obra homônima de Thomas Savage, o filme é quase uma ode a tudo que pode se esperar de Campion: a fraqueza dos homens fortes, a graciosidade brutal da natureza e, principalmente, a solidão.
Vaqueiro raiz, Phil Burbank (Cumberbatch) é um homem durão. Um homem de poucas palavras, postura rígida e de presença ameaçadora. A todo instante, em todas as cenas, o personagem exala volatilidade - como se a cada momento estivéssemos presenciando aquela cena de Os Bons Companheiros (Martin Scorsese), em que Joe Pesci repete: “Eu sou engraçado?”.
Dividindo a vida com o irmão, George (Jesse Plemons, excelente), de perfil completamente oposto ao dele, Phil passa a entrar numa batalha de ciúmes e crueldade a partir da chegada da nova esposa do irmão, a viúva Rose Gordon (Kirsten Dunst), ao rancho da família.
Seria uma história tensa nos tempos atuais, mas ao ambientar a trama nos Estados Unidos rural dos anos 1920, Campion parece querer ampliar todos os sentimentos frágeis de Phil no mundo ao redor: aquela terra dura, suja e injusta; o tal do "mundo cão", talvez.
Área cinzenta
O mundo pintado pelo filme é particularmente duro para homens não tão duros, mas de nenhuma forma frágeis, como é o caso do agora cunhado de Phil, Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee).
Gordon não entra em qualquer escopo dos dois irmãos. Não é insensato como Phil, mas tampouco é gentil como o padastro. É um jovem cheio de curiosidade, tímido, de traços quase femininos e que, por isso, sofre preconceito dos homens duros, generosos, simples ou ricos da época. Nesse sentido, a repulsa que sofre é uma unanimidade.
É quando Gordon se muda para o rancho que o filme ganha corpo, e os segredos que envolvem o rancho aos poucos são revelados.
Talvez, o maior mérito do roteiro seja não traduzir a relação de atração-repulsa de maneira simplista. Muito pelo contrário: são camadas descascadas pouco a pouco, que expõem ao telespectador toda complexidade das relações e os sentimentos humanos.
Campion, aqui, desenha com maestria quase irritante a área cinzenta que rege a sociedade - seja aquela dos anos 1920, ou essa em que estamos hoje. É quase um manifesto que mostra, de forma desconcertante, que a sociedade se modernizou, mas que o comportamento humano provavelmente permaneceu o mesmo ao longo dos anos.
Não é um filme fácil
Ataque dos Cães não é um longa de fácil digestão. Embora perfeitamente executado, é um filme que não apresenta exatamente uma novidade na dramaturgia e, dessa forma, apoia-se quase que inteiramente na figura de Cumberbatch - que, vale repetir, está irretocável no papel.
Há uma leve frustração ao notarmos durante o filme o secundarismo excessivo que os personagens de Plemons e Kirsten Dunst passam a ter.
Coincidentemente, é quando o filme passa a perder um pouco de sua força, uma vez que o foco quase exclusivo que o vaqueiro e o jovem deslocado adquirem no longa torna-se entrave à dinâmica da história.
Em outras palavras: em que pese todo o mérito da obra, a metragem tem problemas de ritmo, e acaba ficando cansativa ao longo das pouco mais de duas horas de filme.
Oscar dentro do Oscar
É prematuro apontar o favoritismo de Ataque dos Cães, enquanto filmes como Benedetta (Paul Verhoeven) ou Titane (Julia Ducournau) mal chegaram aos principais circuitos do mundo. A exemplo de uma corrida eleitoral, antecipação faz parte do jogo.
Mas, se ainda é cedo para falar de Oscar, a obra de Campion parece sofrer uma doença autoimune - aquelas em que o corpo combate a si mesmo.
Tudo porque Cumberbatch realmente está assombroso no papel de Phil Burbank. E, após encerrado o filme, pensamos mais em sua atuação do que na história como um todo.
Como disse no início da crítica, Campion fez um trabalho quase perfeito, dos aspectos visuais e sonoros ao storytelling, tudo parece perfeito. Porém, às vezes é aquela pequena imperfeição que transforma algo excelente numa obra-prima.