É admirável quando um cineasta decide explorar novos campos, gêneros, e trazer sua assinatura para eles. O próprio Jordan Peele, nessa façanha, conseguiu acrescer ao gênero do terror como um todo, por exemplo, com suas metragens. Por vezes esse é também um empreendimento ingrato ou um meio-termo insosso, incapaz, um inspirador de clara e irremediável indiferença. E por mais que Noite passada em Soho não seja isso, também não é um Corra!. Nem acho que deveria ser. É, todavia, um experimento curioso e agradável evidente nesse thriller de Edgar Wright.
A experiência nos longas de Wright, que comumente são uma dobradinha autoral com direção e roteiro dele, expressa um dinamismo ritmado quase obrigatório em grande parte da composição. É quase sempre um universo maleável pelo ritmo pontuado principalmente em uma montagem precisa e responde às demandas exclusivas dos personagens principais. Um exemplo é Scott Pilgrim: contra o mundo ou o próprio Baby driver. É também um universo onde, na mesma toada, o humor é aplicado de forma natural pelo roteiro comumente caprichado, a própria edição ou a composição dos enquadramentos. Resumidamente, é uma experiência sempre rica para o entusiasta observador e regida pelo personagem.
Em Noite passada em Soho acompanhamos a jornada da jovem Ellie (Thomasin McKenzie), que parte do interior britânico para Londres a fim de estudar design de moda. Ao absorver uma realidade angustiante, passa a reviver as experiências da cantora Sandie (Anya Taylor-Joy) dos anos 60 todas as noites e aos poucos experienciar algo, no mínimo, peculiar…
Nessa concepção de universo Wright consegue encaminhar muito bem e de forma objetiva a situação mental da protagonista. Isso ocorre principalmente no uso do espelho dentro das sequências que pontuam a correlação entre as duas mulheres; desde quando Eloise ainda é observadora, à troca pontual da ação, acenando ao público as regras distorcidas daquela experiência e daquele mundo.
Outra escolha forte pretendida e executada muito bem pelo diretor e equipe está na iluminação e no uso de cores. É constante a inclusão de cores projetadas pelo próprio cenário nos personagens, seja de placas de neon, arquitetura, ou na iluminação da rua, tudo para fazer um quase malabarismo na constante troca entre elas. O azul, que no início da história remete ao sentimento tenro, família e o vermelho, nesse mesmo período inicial, cria a sensação do desconhecido, do sonho, à ameaça.
Com isso filme constrói de forma precisa e agradável o convite para a experiência psicológica da personagem principal. Isso ganha potência ao longo da rodagem, quando a decisão é misturar ambos os tons e intercalá-los para reforçar a ideia de que, naquele contexto e a partir de determinado momento, não há uma compreensão evidente -- e nem é a intenção haver, imagino. Tudo é sempre uma ameaça. E de acordo com o desenrolar da história, tudo isso também ganha um significado muito relevante.
Mudança
É curioso notar que, neste contexto, Wright difere de suas regras ‘usuais’, em que o personagem quase molda o universo ao seu bel-prazer a partir da montagem, trilha e efeitos sonoros, para aqui diferir e criar uma experiência objetiva e quase passiva do universo pretendido em Soho. Aspecto que demonstra isso está inclusive no uso mais objetivo e contido das transições e a emancipação do uso de plano-detalhes mais histéricos tão comuns.
Um ponto alto de Noite passada em Soho está também na trilha sonora, que funciona tanto pela personalidade de Eloise quanto como uma forma de pontuação de sua vivência. Aspecto que, em determinados momentos se torna excessivo. Falando em excessivo, bom, imagino que o espectador poderá sentir-se compelido a ir comprar uma Coca-cola nos primeiros 20 minutos de filme, onde há pelo menos cinco product placements do produto, que em todas as aparições se tornam facilmente distrativos.
Há um comentário muito pertinente pretendido pelo roteiro, que passa pelo abuso, a expectativa e a invariável e irônica realidade dos ‘sonhos’, que perde muita força principalmente nos momentos finais da metragem, onde o texto parece querer fechar pontas soltas ao incluir um plot-twist melodramático para se encaixar mais no gênero do que criar uma coesão com aquele testemunho de um universo opressor e psicologicamente confuso.
Descontadas essas inconstâncias, Noite passada em Soho é uma ótima experiência. Ainda que frustrante, também um excelente exemplo de um experimento bem sucedido de um diretor, no mínimo, talentoso.