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Red Dead Redemption 2 e a dicotomia no velho-oeste


Red Dead Redemption 2 está para os jogos como as principais metragens de John Wayne, trilhas de Ennio Morricone estarão cravadas para sempre na história dos westerns. Ao tempo em que os filmes clássicos pavimentaram um gênero por si, o game da Rockstar destaca-se pela maestria com que usa todo o potencial da capacidade tecnológica da geração atual para abordar dicotomias com propósito.

A fina linha entre a ambição e obsessividade, o clássico embate entre bem e o mal, as margens da transição entre um Estados Unidos pré e pós industrializado, os prazeres mundanos e os horrores de uma vida marginalizada. Todos esses são contrastes recorrentes durante as horas da obra. No entanto e sobretudo, RDR2 escancara sua excelência ao estampar durante quase toda a duração o significado de seu título: a possibilidade, o preço, e o caminho até a redenção.

De forma ainda mais precisa e madura do que o jogo anterior, demonstrando também um contraste da própria Rockstar, acostumada às hipérboles caricatas de GTA, Red Dead Redemption 2 apresenta personagens que conseguem ser únicos dentro de uma estrutura narrativa bem construída e essencial principalmente para a primeira metade do game.

Dicotomia
A história nos coloca como Arthur Morgan, braço direito do líder da gangue de foras-da-lei, o intelectual e idealista Dutch van der Linde, personagem que também tem papel relevante no primeiro jogo da série. Essa estrutura da gangue de Dutch está, sobretudo, fora de lugar em um Estados Unidos em ascensão vertiginosa em virtude do industrialismo pós guerra civil, no qual o espaço para os foras-da-lei torna-se não só mais descartável como intolerável.

A companhia de Dutch faz parte de um dos poucos resquícios de um período que as autoridades fazem questão de eliminar a fim de dar espaço para o ‘novo mundo’… Ou pelo menos a ideia de um novo mundo. O início do jogo dá sinais da desarmonia que é colocada como tema central da obra ao introduzir a gangue de van der Linde em um dos momentos mais críticos para os seus companheiros após uma fuga das autoridades na cidade de Blackwater.

O que é tratado pelos personagens como o ‘evento de Blackwater’, inclusive, é quase um personagem próprio no primeiro ato do game, ocasião sempre referenciada, mostrando que grande parte da culpa daquela tragédia deu-se pela visão utópica e muitas vezes obsessiva de Dutch. O diário de Morgan também rememora esse período — para os players mais detalhistas, fica a recomendação.

É neste contato com duas visões de mundo contrárias e nada bidimensionais onde vemos o primeiro dualismo de Red Dead Redemption. Assim, o game mostra uma abertura acerca de nossas ações como personagem, sendo elas consideradas boas ou ruins, e nossa posição como um dos principais aliados do líder daquela gangue. No meu caso, decidi por seguir o caminho do ‘fora-da-lei bonzinho’.

A abordagem desses temas é catalisada conforme os detalhes são acrescentados àtrama. Características como os próprios personagens, cada um com suas questões, modos e respostas em relação aos acontecimentos daquele mundo, fazem com que o jogo se torne ainda mais imersivo. No contexto geral essa conjuntura torna as decisões e reações de Morgan àquele mundo ainda mais relevantes.

As cidades e seus habitantes, o comportamento dos animais selvagens, as reações dos outros personagens ou as opções de interação de Morgan com outros personagens não jogáveis — que dividem-se entre dinâmicas mais educadas ou agressiva s— , ou o simples ato de fazer a manutenção minuciosa da sua arma são elementos que dariam uma análise por si só. Ou também ser vistos como mecanismos que enriquecem ainda mais a característica realista e divisível de RDR2.

Exemplo disso é o acampamento da gangue, uma espécie de “central” no mundo aberto, onde Morgan pode interagir com seus comparsas e experienciar eventos próprios da relação entre dois ou mais personagens, como uma discussão por algo fútil do dia-a-dia ou uma celebração ao redor da fogueira em decorrência do retorno de um companheiro à trupe. Algumas das missões paralelas à história principal — nas quais Arthur passa mais tempo com outros personagens secundários — geram alguns dos momentos mais memoráveis do jogo, inclusive.

O plantel de personagens também torna-se outro destaque em RDR2. Carismáticos, sejam por modos próprios ou missões como a clássica noitada com Lenny — uma das mais geniais da história dos games — , a testemunha do desenvolvimento de personagem de Sadie Adler, o companheirismo e sabedoria de Charles, o relacionamento quase fraternal entre Hosea e o protagonista, o retorno do tragicômico Uncle (Tio), personagem conhecido do jogo predecessor, e o desenvolvimento da família Marston, com destaque para John, o protagonista do primeiro jogo da série. É aqui onde RDR2 ganha ainda mais louros pela forma respeitosa com que constrói a transição entre os dois jogos da série.

A forma como Red Dead Redemption 2 consegue abraçar sua própria essência temática com relação ao primeiro jogo e fazer a ligação entre as duas histórias é o que faz dele uma obra-prima. Ainda que o nome de Arthur Morgan nunca tenha sido mencionado durante o primeiro título, sua história e ligação com a família Marston nesse prelúdio eleva o status da série e a temática trabalhada nela, trazendo tanto um significado próprio quanto uma elevação dos eventos acontecidos no primeiro jogo, que aqui ganham ainda maior carga emocional.

A equipe da Rockstar também vai sinalizando — aos poucos — ao jogador pepitas da história que ganham forma e dimensão ao longo do desenvolvimento da narrativa. Tais como o adoecimento de Hosea, os pequenos diálogos e discussões dos Marston, as interações entre Morgan e John e o próprio desenvolvimento da relação entre ambos, que tem ligação direta com o avanço do protagonista.

Redenção
Arthur Morgan fora o quase-braço-direito de Dutch durante sua permanência na trupe, mas o jogador é colocado em sua pele justamente quando essa percepção começa a mudar. Ao longo da trajetória o título apresenta exemplos sobre como Morgan começa questionar sua compreensão — e a de Dutch — acerca do contexto conturbado daquela transição entre ‘mundos’ e perceber a inconsistência entre o discurso de seu chefe e a prática de suas ações ideológicas.

Passam a ter uma dinâmica própria, centrada pelos episódios decorrentes, questionamentos como o preço da defesa da liberdade, e porventura a natureza dessa “liberdade”. Também qual seria o risco de pagar este preço num momento transitório determinante e avassalador para os Estados Unidos daquela época. O jogo nos dá um exemplo disso com o próprio massacre dos povos indígenas nativos perpetrados naquele período.

Em diálogos com outros personagens, eventos da história, anotações no diário de Morgan e os próprios sonhos do protagonista, somos forçados a ter sempre o enigma entre a moral, os meios e os fins em mente. Passagem que demonstra isso com clareza é a tentativa de absolvição de Morgan à família de um devedor conhecido ao longo da história, que acaba tendo desdobramentos trágicos.

Ao observar o resultado de suas ações em um caminho desastroso, Morgan por fim toma a decisão de ajudar a família e tentar corrigir um de seus erros intrincados à sua vida de fora-da-lei. Uma dessas tentativas de absolvição torna-se o destino dos próprios Morgan, o que resulta diretamente no conflito que encaminha a trama ao seu clímax. Uma sequência final magestral, por sinal.

Crepúsculo
spoilers a partir deste parágrafo

Outros indicativos dessa evolução do personagem são evidenciados com a descoberta da doença de Morgan e os subsequentes reflexos disso — as agonizantes crises de tosse, os desmaios repentinos e a perda de peso criam um tipo de conexão rara entre jogador e obra, o que acaba potencializando a temática trazida pelo título. De uma forma torpe e triste, o jogo faz-nos conectar a uma das experiências mais terríveis da vida humana, o que no contexto tem ares escancarados de karma.

As simbologias inclusas na obra também têm destaque. Vão desde exemplos imagéticos como o cervo nos sonhos de Morgan — que tem como um dos significados a liberdade, a subsequente libertação e redenção — até símbolos musicais. A trilha sonora de Red Dead Redemption 2 é, inclusive, um de seus pontos mais altos.

A passagem na música “Cruel, cruel world, must I go on? Cruel, cruel world, I’m moving on. I’ve been living too fast, and I’ve been living too long…”, por exemplo, parece quase ter sido tirada da mente do personagem principal nos momentos pontuais em que é reproduzida sem que fique piegas ou excessivamente gritante.

Por fim, o jogo nos dá a transição quase que esperada por todos os fãs da série, ao retornar o jogador à pele de John Marston, desde antes da construção de seu rancho. Sequência magistral, misturando música, ritmo e significado, e denota a maestria do domínio da Rockstar ante sua mídia. É neste momento, à pele de Marston, quando o jogador passa a testemunhar o legado de Morgan e o resultado de suas ações ‘redentivas’, principalmente as que vieram a ajudar outras pessoas, amplificando ainda mais o significado da transição entre os dois games. Isso ao tempo em que começamos a vivenciar o início do destino de Marston, o qual todos que jogaram o primeiro jogo da série já têm conhecimento e dá uma outra carga para isso.

**fim dos spoilers**

Red Dead Redemption 2 mostra o domínio de sua composição do início ao fim, não só explorando suas temáticas com o auxílio do detalhismo e precisão histórica, mas espelhando isso na própria elaboração de seus personagens, a relação entre eles e o significado do seu próprio título. Demonstração óbvia, porém não menos importante, de como entender e respeitar a sua franquia e o jogador, trazendo em um jogo a possibilidade de refletir um pouco mais acerca de nossas ações e suas implicações no mundo externo.

Álvaro Viana

Jornalista político, tem 30 anos, apaixonado pelo mundo dos games, cinema, e o ofício de analisar esses temas de forma criativa. Trabalhou com análise de jogos para o jornal Correio Braziliense e outras publicações e edita tudo que você lê neste site. Quando sobra tempo cura memes, reclama no tuiter, e testa novos templates pra loady!

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