O cineasta Mike Flanagan gosta de gente. E tem buscado traduzir em suas empreitadas a complexidade dos sentimentos humanos ao dissecar temas como o luto, preconceito e traumas com a adaptação de obras de autores do nível de Stephen King e Henry James, entre outros.
Em seus últimos esforços, como A Maldição da Residência Hill e A Mansão da Rua Bly — ambos da Netflix –, mostrou ser um diretor de visão. Caminha com destreza entre o drama e o suspense, utilizando não só o terror como veículo para abordar o sofrimento humano, mas também para impor um processo de cura à dor de seus personagens.
Mas é em A Missa da Meia Noite, lançado na última sexta-feira na Netflix, que Flanagan atinge a excelência. Ao longo de sete episódios, o diretor nos entrega um caráter quase literal à concepção de Sartre de que o inferno são os outros, como se não houvesse terror maior que aquilo que o homem é capaz de fazer com o próximo — e consigo mesmo.
Parasse por aí, Flanagan já teria apresentado um ótimo trabalho. Mas vai além. Ao abordar estranhos acontecimentos envolvendo a chegada de um padre a uma pequena ilha em decadência, faz questão de mostrar que, na mesma proporção em que causamos dor, também compartilhamos a redenção, a morte e o paraíso.
Os episódios, baseados em capítulos da Bíblia — gênesis, salmos, provérbios, lamentações, revelações etc. –, são lentos e densos, mas não há um momento desperdiçado em tela; quase todos são tomados por diálogos ricos (e longos) sobre moralidade e a existência, em contraponto ao fanatismo religioso que permeia a ilha.
Catarse
Essa não é uma série sobre mistério, a não ser o próprio mistério que é o sentido da vida — este, testado a cada instante, a cada contraposição de valores pessoais e eventos trágicos.
Como as ferramentas usuais do gênero passam a ter um papel secundário na trama, Flanagan trata de conduzi-la de forma que nunca deixemos de sentir um ar sinistro nas cenas. Os enquadramentos não focam somente no personagem, dando a impressão de que sempre há um terceiro elemento acompanhando cada passo da história.
São poucas também as vezes em que o terror chega às vias de fato, a não ser quando a minissérie se encaminha para o fim. Se no gênero é comum que as produções percam a mão no terceiro ato, neste momento é quando A Missa da Meia Noite se torna um deleite.
A dica aqui é prestar muita atenção ao diálogo entre Riley Flynn (Zach Gilford, da saudosa Friday Night Lights), um homem que retorna à ilha após um evento trágico, e Erin Green (Kate Siegel), sua grande paixão. Aliás: vale muito a pena prestar atenção na dinâmica entre os dois personagens, já que uma das mais belas cenas da série ocorre entre ambos.
Assistir a essa obra logo após a decepção de Maligno tornou-se uma experiência interessante: diferente da obra de James Wan, A Missa da Meia Noite tem o que dizer; usa o gênero com habilidade para contar uma história que, em último grau, fala sobre união e redenção.
Como numa missa gospel, o encerramento da série é catártico, belo e comovente, sem apelar para o melodrama. Um arrebatamento não dos fiéis daquela pequena ilha, mas das instituições que os corrompem e os viram uns contra aos outros.